domingo, 28 de setembro de 2014

A vernissage – Celso

Quando conheci o Celso, eu usava cabelos extremamente curtos, resultado de um recente relacionamento amoroso fracassado, quando então me vinguei em minhas próprias madeixas. Observava-me ao espelho e não me cansava de achar-me nem um pouco atraente. Por isso, me surpreendi quando o Celso apareceu sem avisar no meu trabalho, no meio da tarde, e perguntou se podia voltar mais tarde para me pegar.

— Para me pegar?

— Sim, para darmos uns amassos, disse ele, com simplicidade.

Celso era uns 14 anos mais velho que eu, que mal tinha completado 21 e ainda era uma  estagiária.

 Verão de 1986. O forte calor provocava, no final das tardes, tempestades curtas, embora assustadoras. Mas foi numa manhã ensolarada de domingo, numa feira de artesanato, que conhecemos o Celso, eu e mais duas amigas, Ester e Camila. Combinamos um chope para daí uns dias, e fomos nós quatro e mais dois amigos dele.

Naqueles tempos, meados da década de 1980, Celso desfilava com um velho Dodge Dart da década anterior. E era artista plástico. Pintava umas telas a óleo, e, dizia, preparava uma exposição.

Celso sempre aparecia no final do expediente ou na faculdade, de Dodge ou a pé, e me pegava para os tais “amassos”. De forma que meus colegas do estágio ou da faculdade, que já o conheciam de vista, avisavam: “Aquele seu namorado está aí”. “É o seu namorado no telefone”. Velhos tempos, sem celular nem internet. Em contrapartida, para os amigos de Celso, com quem tomávamos eventuais chopes, eu era a namorada dele. Embora sequer soubéssemos onde o outro morava.

Apesar de nos vermos com frequência quase que diária, era raro nos encontrarmos aos sábados e domingos, pois geralmente ele ia ao sítio dos pais “ver como andam as coisas por lá”. O pequeno sítio produzia hortaliças e frutas, que eventualmente a família vendia.

Uma vez, fomos ao seu “ateliê”. Na verdade, um moquifo num prédio mal afamado próximo ao centro da cidade. O “ateliê” era equipado com geladeira, um fogão portátil, chuveiro elétrico, alguns colchonetes. De fato, lá estavam telas, tintas e pincéis, constatei. De madrugada, quando bateu fome, Celso fez uma farofa de ovos, que comemos com café fresco. De sobremesa, havia umas laranjas, que ele descascou com extrema delicadeza, retirando toda a casca por inteiro.

Celso morava com os pais e irmãos num bairro de classe média, numa casa certamente confortável, para onde ele nunca me levava. Os finais de tarde passados no moquifo/ateliê, porém, eram muito agradáveis. E sempre havia café fresco. Do colchonete, eu podia ver, enquadrada pela janela, uma nesga do céu azul pincelado de tons laranja enquanto Celso, deitado sobre mim, me encharcava de suor, praticando o tantra.

 

Quando ia me buscar na faculdade, Celso costumava esperar a aula terminar num boteco próximo, frequentado pelos alunos. Numa dessas vezes, ele foi sem o velho Dodge, e quando deixamos a faculdade, começamos um “amasso” ali mesmo, na rua, encostados a um muro. À luz do poste, eu via o seu rosto em close, as pequenas rugas que faziam uma espécie de teia em volta dos olhos muito claros, as linhas no contorno da boca. Uma entrada mais forte entre os cachos loiros salpicados de fios brancos aqui e ali já denunciava um princípio de calvície. Os meus cabelos já não estavam tão curtos, de forma que ele esticava de leve as pontas, como se quisesse acelerar o crescimento dos fios, enquanto mordiscava meus lábios e beijava meus olhos. Pela camisa entreaberta de Celso, eu podia sentir os pelos fartos do seu peito roçando em meu colo.

Subimos e descemos ruas até cansar. Quando paramos para comer uma pizza, ele me convidou para irmos até o ateliê. Eu não queria. Aquela noite, preferia ir para algum outro lugar, mesmo que fosse para aquele motel cheirando a mofo que tínhamos ido da última vez. Mas ele insistia:

— Tenho uma surpresa para você.

 Uma surpresa? O que seria?

— Para mim?

— Na verdade, para nós.

Sempre fui muito curiosa. Por isso, não resisti e nos pusemos a caminho do ateliê/moquifo.

 Celso abriu a porta com certa cautela, como se esperasse surpreender alguém lá dentro, ou como para se certificar de que não havia ninguém. Era que, de vez em quando, ele emprestava o lugar para um amigo, que também pintava quadros. Mas o ateliê estava completamente vazio, fazendo com que toda a cautela de Celso se dissipasse por completo, enquanto eu era literalmente arrastada até o quarto.

 — Então? Gostou?

 No meio do quarto, um imenso colchão de casal, novo em folha, que parecia bastante confortável com todos aqueles lençóis e travesseiros. Eu não sabia o que dizer daquele colchão enorme, ocupando quase todo o espaço disponível do quarto.

Foi a última vez que vi o Celso. No próximo sábado seria aniversário dele, e eu queria que combinássemos algo. Uma viagem de fim de semana, talvez. Ele ficou de confirmar.

No dia seguinte ao episódio da cama, quando ia para o estágio, encontrei na rua, totalmente por acaso, a Ester, uma das amigas que estavam comigo quando conheci o Celso, havia mais de seis meses. Ela me perguntou o que eu iria fazer no próximo sábado.

 — É aniversário do Celso e vamos fazer um churrasco. Se der, aparece. Vai ser na casa dele. Eu te ligo, para passar o endereço.

Embora escutasse perfeitamente, palavra por palavra, eu não conseguia compreender muito bem.

— O Celso?, perguntei, gaguejante.

 — Sim, disse ela, abrindo um largo sorriso. Não se lembra dele? Estamos namorando, já faz uns seis meses.

 Pouco mais de um ano depois, recebi em casa um convite do Celso para a sua primeira vernissage.

 

domingo, 21 de setembro de 2014

Happy hour – Ângelo


Outono de 2004.

Eu andava trabalhando muito naquela época, fazendo várias coisas ao mesmo tempo. Um dia, após o expediente, quando ia pegar o metrô, fui até a estação acompanhada por alguns colegas do setor do final do corredor, que era chefiado por um descendente de orientais, muito atarefado e rigoroso.

Pelo caminho, alguns comentavam a felicidade de eu não ser subordinada daquele “nissei” miserável, que tudo o que fazia era não aplicar jamais o tão propalado “transcendentalismo oriental” que, diante daquele homem, parecia não passar de mera lenda. Estressado e autoritário, era o que ele era, queixavam-se.

— O cara só pensa em trabalho!

— Trabalha tanto que até mulher ele arruma no trabalho mesmo...

Estavam se referindo, evidentemente, ao caso que o “japa” estava tendo com uma de suas assistentes e que era a fofoca-sensação do momento.

Eu, ao contrário do japa, não corria o risco de me envolver com alguém no trabalho. Não conseguia achar ninguém interessante. Além do mais, no meu setor só havia velhos caquéticos, semi gagás ou carecas. E definitivamente alcoólatras – já que, todas as noites, invariavelmente, iam aos bares próximos para um happy hour, não sem antes tentar, vigorosa e insistentemente, arrastar consigo alguma incauta do escritório. Quase sempre sem sucesso, a não ser pela dona Heloísa, secretária antiga que, mesmo sob as baixas temperaturas do ar condicionado, insistia em ir trabalhar com os braços de fora.

Aliás, o álcool estava se tornando um sério problema ali, e alguns sequer aguardavam a noite chegar: um deles mantinha uma garrafa de cachaça artesanal – “a melhor do Brasil” – escondida no arquivo morto, junto a toneladas de papeis tão antigos quanto eles. E havia outro que todas as tardes aparecia com um coco verde cujo conteúdo, diziam, era batizado com uma boa “branquinha”. Até mesmo entre os mais jovens o álcool durante o expediente andava fazendo adeptos, como o Jonatas, moço, noivo com casamento à vista, e sério, até o dia em que precisei pegar com ele alguns documentos. Quando nos abaixamos para pegar os papeis na última gaveta, pude perceber a forte nuvem de álcool que envolvia o seu hálito. Parecia uísque.

Foi quando surgiu o Ângelo, o estagiário do setor ao lado do meu – a grama do vizinho é, de fato, sempre mais verde que a nossa, pude constatar. Haviam instalado no corredor uma máquina que fazia um café expresso muito gostoso, o que me fazia levantar várias vezes ao dia para um cafezinho. Ângelo estava se servindo, quando o avistei: quase dois metros de pura beleza angelical que me olharam com um olhar – como definir? Impactante, talvez. Ou perscrutador. Descobri depois que ele tinha uma miopia num grau muito elevado, embora não usasse óculos. Mas isto não vem muito ao caso.

Ângelo se ofereceu para fazer o meu café e, a partir dali, estava sempre junto a minha mesa. Descobrimos interesses em comum – livros, músicas, filmes. Tudo passou a ser pretexto para conversarmos. E de repente passamos, eu e o Ângelo, a ser a fofoca-sensação do momento, em lugar do japa e sua assistente. E ainda mais fofoca e mais sensação era, considerando a grande diferença de idade entre nós – beirava eu os 40 anos já, enquanto ele tinha 23, talvez 24.

Ângelo era dono de um sorriso encantador, além de possuir uma personalidade extremamente magnética que cativava a mulherada. Dinorá, por exemplo, estava vesga por ele. Porém, condenava-me, mandando-me indiretas de todo tipo, sobre uma “desavergonhada” que ela conhecia, e que era uma tremenda “papa anjo”. Logo ela, que era uns bons oito anos mais velha do que eu! Desnecessário dizer que, nas “histórias” da Dinorá, a tal “papa anjos” sempre levava a pior.

Entre as mais novas, a concorrência também era enorme. Eu raramente saía da minha mesa de trabalho, exceto para ir buscar café. Mas em um dia tedioso, em que eu havia terminado um trabalho difícil bem antes do previsto, quando fui pegar um cafezinho, resolvi ir até o setor do Ângelo para, quem sabe, arejar um pouco a cabeça. A Carla, uma jovem secretária que trabalhava em outro andar, estava lá, praticamente sentada sobre a mesa do Ângelo, de minissaia e decotão. Oferecida! Ao me ver chegar, Ângelo tratou de despachá-la, procurando deixar claro que queria que ela fosse embora o quanto antes. Puxou a cadeira para eu me sentar e me mostrou um livro que havia comprado no dia anterior.

— É para você, disse, garantindo que estava mesmo indo levá-lo para mim.

A partir daquele dia, ganhei uma arqui e feroz inimiga, que rugia sempre que passava por mim. A partir daquele dia, também, decidi que era melhor não sair da minha mesa, a não ser para pegar café ou ir ao banheiro. Mas o Ângelo continuou a me visitar, mais assíduo que antes. E quando não havia ninguém por perto capaz de apurar o ouvido, ele me sussurrava, com voz grave, palavras sensuais, como “gostosa”, “tesão”, além de algumas indecências e sacanagens do tipo “quero te lamber toda”, “deixa eu morder teus mamilos”, etc. Até que um dia me desafiou para irmos a um motel.

— Você está me desafiando?!

— Sim, porque acho que você quer, mas não tem coragem...

Quis provar que ele estava completamente enganado: eu não só queria muitíssimo, como tinha toda coragem do mundo. Marcamos o encontro para daí a uma semana.  

Com o Ângelo, descobri exatamente o queria dizer “orgasmo múltiplo”, que até então eu só conhecia de ouvir falar. Foi ele também que me ensinou a gostar de sexo oral. Certa feita, enquanto eu praticava o ato nele, comentei que não gostava muito antes porque achava que pau tinha um gosto ruim, resultado de uma única vez em que tentei, após uma bebedeira em que havia misturado de uísque a vodka, vinho a cachaça, e que o pau em questão acabou ficando com gosto de cabo de guarda-chuva velho em minha boca.

Ele riu.

— Pau não tem gosto de nada!

Congelei imediatamente a ação e quis saber como ele sabia, com tanta certeza, que pau não tinha gosto de nada. Ele desconversou, afirmando que, se buceta não tinha gosto nenhum, por analogia, evidentemente, pau também não devia ter...

Mas me veio imediatamente à cabeça o Vadinho – eu tinha visto recentemente o clássico das sacanagens cinematográficas brasileiras, o filme Dona Flor e seus dois maridos – e a cena em que Vadinho/José Wilker fala para Sônia Braga/Dona Flor, com a cara mais deslavada do mundo, uma cara que exprimia sacanagem em estado bruto, bom, lembrei da cena em que Vadinho, ao comer caviar numa festa, fala para a esposa que xibiu – que é como os baianos chamam buceta na Bahia –, bom, Vadinho fala para dona Flor que xibiu tinha gosto de caviar. Ou ao contrário, não me lembro direito.

Parei de sair com o Ângelo. Simplesmente não conseguia fazer sexo com um homem que sabia que pau não tinha gosto de nada.

Duas semanas depois que saímos pela última vez, o Ângelo deixou o estágio.

domingo, 14 de setembro de 2014

O rio encantado – Adriano


Semana Santa de 1987, lá se vão quase 30 anos.

Santa Semana Santa, diria o Fábio, um amigo meio crente, meio descrente – era ateu e espírita, crédulo e incrédulo, capitalista e comunista – e totalmente devoto da bebida, embora fosse alérgico a álcool. Íamos acampar no feriadão. Eu, o Fábio, a Marta, o Cid e Margarida. Ninguém queria que Margarida fosse, mas ela ficou sabendo. Estávamos no bar da Sara – outra amiga (éramos todos amigos) –, eu, o Fábio, a Marta e a Margarida, quando chega o Cid, perguntando se estava tudo certo.

— Tudo certo pra quê?

O Fernando também iria, mas, de última hora, arranjou outro programa.

— E agora?!

Estávamos contando com a barraca dele.

Fábio esclareceu que a barraca, porém, estava garantida. Uma barraca “enorme”, para quatro pessoas.

— Quatro?

Mas, apertando, dava para cinco, quem sabe, seis.

Fábio, a cara toda vermelha, nariz inchado, já dava os primeiros sinais de que era melhor irmos embora. Os próximos passos seriam a clássica “pagação” de mico, o vexame e, na sequência, o apagão sobre a mesa. Melhor ir embora logo.


O velho trem deslizava com suavidade e precisão no final de tarde rumo ao super feriado da Semana Santa. Um vento gelado cortava o ar, mas o calor humano dentro dos vagões lotados ajudava a equilibrar a temperatura, tornando-a extremamente agradável.

Éramos muitos e o mais velho de nós talvez não tivesse mais que 23 anos.

Um garrafão de vinho barato passava de mão em mão, de boca em boca.

Fábio havia levado uma garrafa de vodka.

Foi numa dessas idas e vindas do garrafão de vinho que eu o vi. Moreno, cabelos fartos, olhos claros e meio puxados, alto, camiseta silkada. Lindo. E o Fábio ao meu lado, já completamente vermelho, olhos congestionados e língua enrolada. Poderia contar os minutos, talvez segundos, até ele apagar completamente. Tentei me desvencilhar. Ia sugerir trocarmos os lugares – Marta ficaria no banco ao meu lado e o Fábio junto do Cid –, mas era tarde demais. No banco de trás, Marta e Cid atracados, aos beijos, braços, pernas e mãos.

Margarida havia sumido no meio da multidão.

Só restava-me mesmo aturar o Fábio. Nem nada com ele eu tinha.

Quando o Fábio finalmente capotou, levantei e comecei a atravessar o vagão lentamente, na esperança, quem sabe, de um esbarrão, um “desculpa”, um “não foi nada”, “como é mesmo seu nome?”.

Nada. Absolutamente. Atravessei todo o vagão perguntando se alguém tinha visto a Margarida.


A pacata cidade, perdida no meio do mato, era praticamente um povoado de casas baixas junto à estrada de ferro. Chegamos à boca da noite, todo mundo deixando os vagões meio a esmo. E agora? Para onde iríamos?

Segundo o Fábio, íamos fazer uma “escala” na casa da tia de alguém, antes de seguir para o local do acampamento. Um bom pedaço de chão de terra batida, que iríamos percorrer a pé.

A casa atarracada, pintada de um amarelo desmaiado, tinha uma larga varanda que logo ficou apinhada de mochilas, colchonetes e barracas desarmadas. Foi servido um lanche farto – café com pão de queijo, sanduíches. Água bem gelada, que estávamos todos precisando.

Ah! Leques! Havia uns dois ou três leques velhos e meio quebrados esquecidos num canto de uma das janelas da varanda, que certamente deviam ter pertencido à dona da casa, mas que agora apenas davam um ar de decadência ao velho casarão. Fábio aproximou-se da janela fechada, pegou um dos leques empoeirados e começou a requebrar e a imitar uma dançarina espanhola, com direito a sapateado. Às vezes Fábio era mesmo impagável. Ou completamente inconveniente.

Coisa de meia hora mais e o Fábio, após algumas confabulações, decretou que partiríamos. O Adriano ficaria na casa da tia da Sol.

— Sol? Que sol?

— É “quem”. Sol, a namorada do Adriano.

Ah, bom, a namorada do Adriano.

— E quem é Adriano?

— Já disse, o namorado da Sol.

Soberana no céu, a lua iluminava com luz tênue a estrada deserta, um caminho escuro e frio que praticamente íamos tateando.

Uma cobra passou por nós apressada. Alguém tropeçou nela, assustando-a e fazendo-a sacudir o chocalho. À luz precária, as sombras do caminho escondiam árvores, pedras e bichos, e a estrada de terra nua parecia um rio leitoso que as poucas lanternas não conseguiam desvendar. Um mundo à parte, que viéramos perturbar.

Finalmente chegamos. Havia uma queda d´água barulhenta e gelada. Era tudo o que podíamos perceber naquela escuridão intensa. Quem tinha lanterna, não a emprestava por nada. O Fábio e o Cid começaram a armar nossa barraca completamente às cegas, mas em pouco tempo desistiram, e ficamos ao relento, sentindo frio e olhando para o escuro.

Fábio, encharcado de vodka, apagou por ali mesmo, sobre a pedra fria. Acenderam uma fogueira. E havia vinho e violão.

Quando acordei, o sol já ia alto, um cheiro de café fresco dominava o ar e a barraca já estava armada.


O sítio do acampamento distava da pacata cidade alguns quilômetros. Tratava-se de propriedade particular, cujo dono permitia acampamentos eventuais, desde que os grupos respeitassem a propriedade, não depredassem a natureza, deixassem o local limpo, etc. etc. Havia placas sobre isto espalhadas pelo local.

Um lugar fascinante, à luz da manhã fresca e ensolarada.

Um burburinho se formou junto à passagem na cerca de arame farpado. Alguém havia chegado, com sua mochila, a barraca e o violão.

Era o mesmo carinha do vagão do trem: os cachos fartos sacudidos pelo vento, os olhos sorridentes.

— E a Sol?, perguntaram alguns.

— Pois é, não veio. Os pais não deixaram.

Nossos olhares enfim se encontraram, e então...

Preciso dizer que me mudei de mala e cuia para a barraca do Adriano? (com a Margarida junto!), até porque a “nossa” barraca havia sido hermeticamente interditada pela Marta e pelo Cid, durante todos aqueles dias, durante todas aquelas noites. E tardes também.

O Fábio? Não precisava de barraca nenhuma, apenas de boas doses de vodka para capotar, anestesiado, sobre a pedra fria.

Que mais? Que Adriano era o melhor cozinheiro de camping do mundo? Que fazia a mais gostosa feijoada enlatada, o mais saboroso macarrão instantâneo com creme de leite, o mais delicioso chocolate com leite em pó e achocolatado?

Os banhos no rio com muito xampu. Os beijos sob a cachoeira.


Depois daquele acampamento em que o Adriano foi para mim uma espécie de imperador particular, de volta à cidade grande, nos ligávamos às vezes, e íamos a festas malucas, de onde saíamos cambaleantes, carregando garrafas de vinho e taças de champanhe. Outras vezes nos encontrávamos totalmente por acaso, pelos bares. E sempre acabávamos grudados um no outro, num desses motéis baratos, onde não serviam café da manhã. Invariavelmente, nessas ocasiões, íamos à padaria mais próxima, onde pedíamos café com leite e pão com queijo quente.

Mas os acasos cessaram. Os números de telefone mudaram. Alguns bares fecharam, outros abriram, fazendo com que os itinerários fossem sendo aos poucos alterados. Por fim, perdemo-nos de vista, naqueles tempos sem internet ou celular.


Soube um dia, tempos depois, que o Adriano estava de casamento marcado. Quem sabe, com a Sol.

domingo, 7 de setembro de 2014

O Abecedário



Pois o que estarei dizendo será apenas nu.
Clarice Lispector

Jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu.
Clarice Lispector

Sete de setembro de 2014. Que feriado mais xoxo, nem cara de feriado tem, mas de domingo mesmo. A própria mídia nem se dá ao trabalho de divulgar, como em todo feriado, o movimento nas estradas, aeroportos e rodoviárias. Um verdadeiro marasmo, interrompido aqui e ali com pequenas ameaças de manifestações, no rastro dos desfiles da Independência, em algumas capitais.

Enquanto tomo essas notas, relembro que o último feriadão, digno deste nome, foi o da Semana Santa, em abril. Para os cariocas, um super feriado, com direito a Tiradentes, na segunda-feira, e São Jorge, na quarta-feira. Com o “enforcamento” (desculpe, Tiradentes) da terça-feira, 22, sete dias garantidos de folia. Feriadão comparável somente aos seis dias corridos das Semanas Santas de 1987 e 1992, quando a Sexta-feira Santa caiu num 17 de abril, com o feriado de Tiradentes na terça-feira. Note-se que, naqueles tempos idos, ainda não havia o feriado de São Jorge, conseguido a duras pelejas pelo vereador Jorge Babu, devoto do Santo guerreiro, somente em 2008.

Mas nem tudo foram flores no Rio de Janeiro, na quase infindável Semana Santa de 2014. Por exemplo, a Arquidiocese cancelou as celebrações da Paixão de Cristo devido ao protesto, na porta da Catedral, de dezenas de pessoas que haviam sido retiradas pela Polícia Militar de um prédio abandonado, pertencente à companhia telefônica Oi, a qual havia recorrido à Justiça pela reintegração da posse do imóvel. Na verdade, um prédio praticamente em ruínas, que a Oi já havia abandonado faz tempo. Do outro lado da cidade, no aeroporto do Galeão, houve manifestação de vigilantes por melhorias salariais. Uma verdadeira afronta ao turismo. O que terão pensado os turistas que elegeram o Rio como destino naquela Semana Santa? Por fim, o balanço daquele feriadão deixou como saldo a notícia, já quase rotineira, de que uma bebê foi encontrada abandonada no banheiro de uma rodoviária. Diante do fato cru, as palavras da Escritura parecem arquejar, inúteis, envoltas em quente cordão umbilical: “Vinde a mim os pequeninos”.

Paro para refletir se, nos idos de 1987, naquele outro super feriado de Semana Santa, em pleno “Império Sarney”, o contexto teria sido muito diferente. Tento rememorar os tormentos daquela época, em vão. Apenas a figura de Ulysses Guimarães, com a tarefa hercúlea de elaborar a nova Constituição, me acode à lembrança, e percebo que, 26 anos depois de promulgada, a “Constituição Cidadã” de 1988 bem que anda merecendo uma boa revisão...

Outra imagem, nítida, me vem à mente, resgatada daquela longínqua Semana Santa de 1987: um jovem extremamente atraente, de cabelos fartos e cacheados e olhos castanhos claros meio puxados. Amo essa lembrança repentina do Adriano, que me vem como um sopro de vento fresco, ainda que seja somente para arrastar as folhas secas que caem sem cessar das amendoeiras neste final de inverno carioca de 2014, e descubro, agora, como é terrível não se ter notícia de quem se amou um dia. Aos poucos, outros rostos me vêm à lembrança, que, assim como o Adriano – vamos chamá-lo de Adriano –, foram se dispersando no tempo e no espaço. Então me ocorre fazer uma espécie de “inventário amoroso/sexual”, já que – e neste ponto esboço um sorriso mental para mim mesma – material não me falta, mesmo que seja tão etéreo, muitas vezes volátil e frágil, como a própria memória. Um tal inventário necessariamente recuaria até 1984, abarcando assim um arco temporal de 30 anos. E por que não o faria? Sobra-me tempo, e quando menos, esse percurso de volta ao passado pode servir como um exercício para a memória, da mesma forma que, para joelhos frágeis, o remédio, ainda que meramente paliativo, possa ser apenas uma caminhada, mesmo que para lugar nenhum.

Mas então só agora também me ocorre que, por precaução e grande cautela, devo mudar todos os nomes que constarem de tal inventário. A começar do Adriano. Para não correr o risco de precisar dizer depois que “qualquer semelhança com a realidade será mera coincidência”, já que tampouco este registro não será “uma obra de ficção coletiva baseada na livre criação artística e sem compromisso com a realidade”, mas uma distração de realidade individual, fundamentada nas amarras da rememoração e, sim, com o mais completo compromisso com minha realidade única, intransferível e pessoal.

Um inventário! Não com o fim, é certo, de julgar, nem pesar, como numa balança, quantidades de felicidade ou de infelicidade, mas com o intuito talvez de, cobrindo este arco temporal tão longo, quem sabe, enganar o eterno presente catastrófico, com seu desfile interminável de tragédias.

Farei o inventário, é certo, mas hesito se o coloco em ordem cronológica ou alfabética. Pois alguma ordem na bagunça certamente devemos por. Decido por fim: será um abecedário, já que foi o Adriano quem primeiro me veio à lembrança. E decido também que aos nomes reais corresponderão as letras iniciais dos que aqui irão registrados.

Vinde a mim as lembranças. Que me sejam leves e gratas.