Definitivamente, ando saudosa de mim. Ou melhor, daquela garota que não tinha medo de nada, que ficava
trancada horas numa biblioteca, estudando, ou que chegava em casa de manhã,
após uma peregrinação etílico-sexual pela noite afora.
Hoje, tenho medo de tudo, até mesmo de
chegar à janela do quarto e uma bala perdida me encontrar. Em compensação,
perdi outros medos, como o de morrer e o de almas do outro mundo. Tenho muito
mais medo das almas deste mundo mesmo. Não creio na humanidade, nem na cura do
câncer. Estamos todos condenados.
Quando conheci o Tony, ainda era bastante
destemida. Diziam que era um sujeito perigoso. Mas como crer nisso, diante
daquele baixinho de metro e meio de altura, longos cabelos amarrados num
rabo-de-cavalo e que levava, onde quer que fosse, uma gaiola com um melro?
Tarde chuvosa do verão de 1989.
Eu, o Fábio, a Margarida, sentados à
mesa de um bar bem longe de casa, quando ele parou, de passagem, pousando a
gaiola com o pássaro no chão ao lado da mesa. Estava indo à padaria, buscar
leite para o filho pequeno, de um aninho de idade. Mesmo assim, concordou, após
alguma insistência do Fábio, em tomar um gole da “branquinha”.
— Só para espantar o friozinho, disse,
esfregando as mãos.
Depois que ele se foi, o Fábio
contou-nos sua história: vivia com uma mulher bem mais velha, que de repente
engravidara, não lhe deixando outra alternativa que assumir o “lance” e o
filho.
Particularmente, eu queria mesmo era
saber por que aquele baixinho de vinte e oito anos, dono daquele simpático melro
na gaiola, tinha fama de ser um cara perigoso. Fábio quase se engasgou,
gargalhando. E contou que o Tony era um X-9. “X-9?”. É como chamam os delatores que passam
informações para a polícia, em troca de algum trocado.
— Na verdade, ele nem é tão perigoso. É
ele que corre mais perigo, sentenciou o Fábio, virando mais um gole da
branquinha, enquanto eu e a Margarida pedíamos mais um chope.
No sábado seguinte, à noite, fomos eu, Fábio
e Margarida – estávamos ficando quase inseparáveis, cada um à sua maneira e por
diferentes motivos, afogando as próprias mágoas no álcool –, para um outro bar,
muito mais longe ainda de casa. E demos de cara com o Tony, que, sem nenhuma
cerimônia, sentou-se à nossa mesa. Era convidado do Fábio.
Às vezes o Fábio pregava essas peças.
Convidava algum amigo que eu não conhecia, só para ver até que ponto eu
resistiria! Se resistiria...
Desta vez o Tony estava sem a gaiola com
o melro. E não mencionou o filho, nem ninguém perguntou nada. Ficamos todos
bebendo, nos embebedando, até que fomos para outro bar, onde havia dança.
E o Tony pendurou-se em mim,
literalmente, a noite toda.
Ele vestia um casaco de couro preto, e
parecia ter passado gel nos cabelos, bem presos para trás. Tinha uns olhos
amendoados que, ali, à meia penumbra, me pareceram muito brilhantes, quase
claros.
Sim, nos beijamos, freneticamente, mais
para provar o gosto um do outro, do que por qualquer outra coisa. E fomos
embora, já era quase madrugada. Cada um para sua casa. E o Tony servindo de
motorista, com o seu velho Corcel enferrujado.
Passaram-se meses – muitos meses, durante
os quais eu estava num relacionamento tão intenso quanto conturbado com “um
certo capitão Rodrigo” –, sem que eu sequer lembrasse do Tony ou do que havia
sido feito dele, após aquela noitada totalmente sem sentido. Porém, certa vez
em que eu e o Rodrigo tivemos uma briga séria, que pôs um fim irrevogável à
nossa história (assim pensava eu), de repente lembrei do Tony. Por onde andariam,
ele e o passarinho na gaiola?
Liguei para o Tony, no trabalho, claro, que
ele não dera o número de casa, por motivos óbvios, e também, naqueles tempos, ainda não
havia essa oitava maravilha chamada celular, que só viraria realidade cerca de
uma década depois. O Tony pareceu um tanto indiferente, ou pelo menos evasivo,
ao telefone. Disse que estava no trabalho – eu sabia, claro –, uma fábrica de
roupas que ficava num lugar muito distante – isto, eu não sabia. Sempre fui
curiosa, já relatei isto em algum outro lugar, e fiquei me ardendo para
conhecer a tal fábrica de roupas. “Posso ir aí?”. Eram uma duas horas da tarde.
Ele ficou em silêncio uns instantes e finalmente disse “tudo bem. Sabe onde
é?”. Eu não fazia a menor ideia de como chegar naquele lugar, mas o Tony me deu
todas as coordenadas – naquele tempo também não havia Google Maps nem GPS.
Peguei um ônibus, depois o trem e mais
outro ônibus rumo ao desconhecido. Mas, naquele tempo – também já escrevi isso
antes –, eu ainda era bem destemida, do alto dos meus vinte e quatro anos.
Finalmente, cheguei a um local semi
deserto que, disseram, não distava muito de um presídio de segurança máxima.
Mas a tal fábrica de roupas estava mesmo lá, tal como o Tony dissera. Enorme,
toda cercada por altos muros e arames eletrificados.
Já na entrada, fui recebida com certa
deferência, quando citei o nome da pessoa a quem procurava. Um segurança me
levou ao segundo andar do prédio, onde uma secretária disse que “o doutor
Antonio lhe aguarda”. Ele recebeu-me com refrigerantes – não bebia café – numa
sala com um ar condicionado extremamente frio. Era o gerente daquela fábrica.
Depois, levou-me para dar uma volta pelo local. “Já esteve numa fábrica de
roupas antes?”.
Do corredor do segundo andar, podia-se
ver as operárias lá embaixo, numa espécie de amplo galpão, cada uma sentada à
sua máquina industrial. Eram centenas delas, um ou outro homem quebrando aqui e
ali o monopólio feminino. As operárias recebiam as peças já cortadas, passavam
uma costura e entregavam a peça à próxima, que iria fazer os arremates e passar
adiante, para aplicação de bolsos e botões numa máquina automatizada. Uma produção
febril de calças jeans, e tantas, e todas absolutamente iguais, que fiquei
tonta. Senti-me grata comigo mesma por estar usando uma calça preta de algodão
e uma camisa artesanal, bem colorida, peças que não se assemelhavam em nada com
a produção massiva de jeans que eu estava tendo a oportunidade de presenciar.
Ao longo do corredor, pude perceber, havia
vários inspetores, que fiscalizavam, de pontos estratégicos, o trabalho das
operárias. Até que a sirene tocou – eram cinco horas da tarde – e imediatamente
as operárias largaram suas máquinas e foram bater o cartão do ponto. O expediente
daquele dia havia acabado. Tony aguardou até o burburinho terminar, e ficamos,
eu, ele e apenas um dos seguranças, sozinhos naquela imensidão. Até que o acompanhei
ao estacionamento, onde entramos, eu e ele, no velho Corcel enferrujado.
No trajeto, eu me perguntava se aquela
história de X-9 tinha algum fundo de verdade, ou se era apenas lenda, baseada
em fofocas, quando o Tony interrompeu meus pensamentos.
“Deixo você em casa, ou tomamos antes um
drinque?”, perguntou. Era um final de tarde de sexta-feira, hora propícia para
um happy hour. Não respondi logo, e nem precisou. Mais à frente, paramos num
bar próximo da fábrica, onde tomamos alguns chopes. Que tempos aqueles, em que não
havia Lei Seca! O Tony, porém, bebeu pouco. Voltamos ao Corcel, e seguimos
direto para um motel, que ficava a meio caminho da fábrica e da minha casa.
Mal chegamos ao quarto, nos atracamos
desesperadamente, nos embolando nos cabelos um do outro. Passado o primeiro
instante, faltava-nos fôlego, enquanto sobrava tesão. Quem diria, eu e aquele
baixinho de metro e meio, e um pau que...
Depois, ficamos fumando e curtindo a
musiquinha do rádio do motel, até que o Tony levantou-se para ir ao banheiro. Estiquei
o braço para apagar o cigarro no cinzeiro, e aproveitei para ficar bem relaxada,
de bruços, descansando. O Tony saiu do banheiro e veio vindo por cima de mim,
massageando-me as nádegas com vigor. Com extrema delicadeza, afastou com sua
mão pequena os meus cabelos, espalhados pelas costas e ombros, e começou a
beijar-me a nuca, descendo vagarosamente, deliciosamente, sua língua grossa e
úmida por minhas costas.
A essa altura, eu já estava novamente
toda excitada, desejando mais que nunca a penetração. Ele então montou nos meus
quadris e foi penetrando com suavidade e firmeza seu pequeno pau na minha
bunda. Eu gemia de prazer. Foi a primeira vez que fiz sexo anal, se é que sexo
anal era daquele jeito que se fazia, com um pau que mais lembrava o pássaro
engaiolado do Tony que, agora, cantava, e cantava, e cantava... dentro de mim.
Foi
boooooommmmm.
Cheguei em casa à hora em que,
geralmente, costumava sair – por volta de dez, dez e meia da noite, com o
cabelo desgrenhado e úmido.
Não tornei a ver o Tony, nem sequer nos
ligamos. O Fábio não suspeitava de modo algum do que acontecera – e jamais
saberia, pelo menos da minha parte. Mas imagino que o Tony também não contou
nada, senão o Fábio não teria deixado passar, sem algum comentário invejoso e
maldoso.
O fato é que, cerca de dois anos depois,
recebi um convite de casamento. Era do Tony, que iria se casar com uma mulher
uns cinco anos mais nova que ele, numa igreja evangélica, com direito a música
gospel e pajens, mas, porém, sem uma gota sequer de álcool. Como não poderia
deixar de ser, fomos ao casório, eu e o Fábio.
A noiva estava grávida.