Somente
em julho de 1992, de forma completamente casual, tive notícias do Fernando: ele
havia morrido afogado na caixa d’água do prédio onde funcionava seu escritório,
havia seis meses.
Fernando
era publicitário e havia chegado a ganhar alguns prêmios por logomarcas que
criou. E tinha apenas 26 anos de idade. Quando o conheci, em julho de 1986, a
seis anos atrás, ele usava uma barba um pouco cerrada, na tentativa, quem
sabe, de parecer um pouco mais velho, ou mesmo de compensar a altura, já que
media apenas um metro e sessenta e cinco centímetros. Era extremamente branco e
tinha olhos esverdeados, que variavam de tom conforme a luminosidade.
Às
vezes, ele aparecia sábado à tarde nos botecos que eu e o Fábio costumávamos
frequentar, mas ficava pouco. Suas aparições eram tão repentinas quanto rápidas,
e somente por volta de junho ou julho de 1989 começamos a nos ver com mais
frequência e por mais tempo, quando soube que ele tinha um filho, de cerca de um ano de idade, fruto de um relacionamento casual. Fiquei sabendo
deste fato de forma inesperada: fui à padaria comprar pão para o café da tarde
e eis que me deparo com uma criança em tudo idêntica ao sobrinho do Fernando,
de mais ou menos um aninho, que eu conhecia. Pensando se tratar da mesma
criança, pus-me a brincar com o garoto, chamando-o pelo nome, sem ao menos perceber
que a mãe era completamente outra, e não a irmã mais velha do Fernando. A
mulher, furiosa, retrucou, dizendo que não era aquele garoto, e sim o primo
dele, filho do Fernando.
Comentei
com o Fábio o acontecido, e ele não só confirmou como deu ricos detalhes da
história. Depois, o próprio Fernando também confirmou, acrescentando que havia
assumido a paternidade do menino, da mesma forma que ajudaria a criá-lo, embora
não tivesse mais nada a ver com a mãe. Naquela época, éramos amigos, e saíamos
todos juntos, eu, o Fábio, o Fernando e a Clara, para beber nos finais de
semana. Eu e a Clara íamos primeiramente pegar o Fábio em casa e, na sequência,
o Fernando.
Fiquei
completamente abalada com a notícia, já velha, da morte tão estranha do Fernando.
Embora tivéssemos tido um relacionamento fortuito, praticamente casual, eu
gostava muito dele e o admirava também como um profissional bem sucedido.
Fernando
era dado a esoterismos e se dizia cavalheiro da Ordem da Rosa Cruz. Além do
mais, tinha um talento especial para contemplar tragédias de bem perto, como
quando praticamente presenciou o suicídio da Martinha – um acontecimento
traumático para todos nós. Eu só não esperava que ele próprio tivesse
protagonizado uma tragédia.
Segundo
contou-me, com atraso, o Fábio, o Fernando havia ido ao escritório que ficava
no centro da cidade, um sábado à noite, acompanhado da mulher, quando ocorreu a
tragédia. Ele estava casado há pouco mais de três meses com uma verdureira que
conhecera na feira. A feirante vendia verduras folhosas, como couve,
alface, repolho, salsinhas e cebolinhas. Eu a conhecia de vista e sabia que era irmã de um rapaz que embrulhava
o pão na padaria da esquina. Algum tempo atrás, numa ida à padaria, quando eu
nem suspeitava que ela e o Fernando sequer se conheciam, a encontrei no caixa,
enquanto o irmão se dizia o gerente da padaria.
Foi
o Fábio, mais uma vez, quem esclareceu os detalhes: com o casamento, o Fernando
havia comprado a padaria para a mulher tomar conta, enquanto o cunhado era uma
espécie de sócio.
Eu
andava às voltas com meus próprios problemas, que não eram poucos nem simples, e
não soubera de nada disto. Depois que o Fábio me contou todo o acontecido – o
casamento e a morte fatal do Fernando –, fui à padaria, agora com novos olhos,
e lá encontrei a viúva no caixa, de short extremamente curto e pernas quase
totalmente tatuadas. Mascava chicletes e demorou a me devolver o troco, naquela
época em que as caixas registradoras não calculavam automaticamente, como hoje
em dia, o “valor recebido” e o “troco”.
No
trágico sábado daquele verão de 1992, Fernando havia levado a esposa para conhecer o escritório de publicidade e lá
beberem um vinho. Quem teve a ideia de subirem ao telhado, para se refrescarem à
beira da caixa d’água naquela noite de sábado extremamente quente de janeiro, ninguém ficou sabendo. O fato é que os bombeiros foram chamados para
retirarem o corpo do Fernando, que havia caído dentro da
enorme caixa d’água.
Era
difícil digerir toda essa história, tanto quanto sabíamos que nunca mais
veríamos o Fernando, seus olhos verdes, sua voz suave, seu jeito de menino. Em
finais de junho de 1989, começamos a sair mais, eu, ele, o Fábio e a Clara. Houve
uma noite de sábado em que eu e a Clara
fomos à casa do Fábio, buscá-lo para sairmos. O Fábio nos esperava já todo arrumado.
Aliás, o Fábio nem devia se “arrumar”, pois sempre o víamos com a mesma
aparência, o cabelo um pouco grande, partido de lado, barba meio por fazer. Mas
o Fernando era diferente. Levava horas se arrumando.
Quando
chegamos ao apartamento do Fernando, onde ele morava com os pais e a irmã
caçula – Antônia –, ele ainda não havia tomado banho. Abriu a porta e
mandou-nos esperá-lo no quarto. Não havia mais ninguém – os pais estavam
viajando e a Antônia não ia para casa havia uma semana. As “histórias” de
Antônia, aliás, renderiam muitas linhas. Para simplificar, vamos dizer apenas que
ela era bem parecida fisicamente com o Fernando, porém de cabelos longos e sem
barba. Os olhos verdes eram os mesmos, e tinha tatuagens em um dos braços e
pescoço. Segundo dizia a própria, ela já havia feito diversos abortos, e sempre
tinha medo de precisar fazer mais algum.
Naquela
noite de sábado de fins de junho de 1989, por diversas razões, eu andava
precisando me distrair. Sentamos os três na cama do Fernando, aguardando-o,
enquanto ele tomava uma ducha. Era um quarto bem agradável, que lembrava mais o
quarto de um adolescente, e não de um profissional bem sucedido e já premiado. Embora
particularmente eu não fizesse ideia de como fosse o quarto de um “profissional
bem sucedido”. Havia cartazes de bandas de rock pelas paredes, e o Fábio
colocou o Pink Floyd para tocar baixinho.
Quando
o Fernando chegou, estava com a toalha de banho enrolada nos cabelos, para não
molhá-los. Mas já saíra do banheiro vestido de calça jeans e camiseta. Retirou
a toalha dos cabelos e, sentado num banco à nossa frente, começou a secar os
pés com a tolha, com gestos vigorosos e rápidos. Serviu-nos uísque, que ficamos bebericando
ao som do Pink Floyd. Enquanto calçava o tênis, Fernando mudou de ideia sobre
sairmos. Por que não ficávamos por ali mesmo? Estava tão bom...
Não
lembro ao certo como começamos a nos beijar, mas lembro perfeitamente que a Clara
e o Fábio começaram a fazer o mesmo. Lá fora caía uma chuva fria, mas ali, no
quarto aconchegante do Fernando, a temperatura subia cada vez mais.
Por
via das dúvidas, o Fernando fechou a porta do quarto e ficamos, eu e ele, deitados na
cama, escutando, pela terceira ou quarta vez, o disco do Pink Floyd. E nos
beijando no escuro. Fábio e Clara, deitados no tapete no chão, pareciam muito íntimos. Na
penumbra, não dava para perceber o que faziam, mas, pelo jeito, estavam
transando.
Fernando,
excitado, beijava-me a orelha, mordia-me os lábios, apalpava-me o zíper da
calça, até que o abriu. E ali, na estreita cama de solteiro, grudados e
silenciosos, procurando não nos mexermos muito, eu e o Fernando fizemos sexo, e
foi muito bom. Depois, saímos algumas vezes mais, mas não voltamos a transar,
talvez por mero capricho do destino.