domingo, 26 de outubro de 2014

O afogado – Fernando


Somente em julho de 1992, de forma completamente casual, tive notícias do Fernando: ele havia morrido afogado na caixa d’água do prédio onde funcionava seu escritório, havia seis meses.

Fernando era publicitário e havia chegado a ganhar alguns prêmios por logomarcas que criou. E tinha apenas 26 anos de idade. Quando o conheci, em julho de 1986, a seis anos atrás, ele usava uma barba um pouco cerrada, na tentativa, quem sabe, de parecer um pouco mais velho, ou mesmo de compensar a altura, já que media apenas um metro e sessenta e cinco centímetros. Era extremamente branco e tinha olhos esverdeados, que variavam de tom conforme a luminosidade.

Às vezes, ele aparecia sábado à tarde nos botecos que eu e o Fábio costumávamos frequentar, mas ficava pouco. Suas aparições eram tão repentinas quanto rápidas, e somente por volta de junho ou julho de 1989 começamos a nos ver com mais frequência e por mais tempo, quando soube que ele tinha um filho, de cerca de um ano de idade, fruto de um relacionamento casual. Fiquei sabendo deste fato de forma inesperada: fui à padaria comprar pão para o café da tarde e eis que me deparo com uma criança em tudo idêntica ao sobrinho do Fernando, de mais ou menos um aninho, que eu conhecia. Pensando se tratar da mesma criança, pus-me a brincar com o garoto, chamando-o pelo nome, sem ao menos perceber que a mãe era completamente outra, e não a irmã mais velha do Fernando. A mulher, furiosa, retrucou, dizendo que não era aquele garoto, e sim o primo dele, filho do Fernando.

Comentei com o Fábio o acontecido, e ele não só confirmou como deu ricos detalhes da história. Depois, o próprio Fernando também confirmou, acrescentando que havia assumido a paternidade do menino, da mesma forma que ajudaria a criá-lo, embora não tivesse mais nada a ver com a mãe. Naquela época, éramos amigos, e saíamos todos juntos, eu, o Fábio, o Fernando e a Clara, para beber nos finais de semana. Eu e a Clara íamos primeiramente pegar o Fábio em casa e, na sequência, o Fernando.

Fiquei completamente abalada com a notícia, já velha, da morte tão estranha do Fernando. Embora tivéssemos tido um relacionamento fortuito, praticamente casual, eu gostava muito dele e o admirava também como um profissional bem sucedido.

Fernando era dado a esoterismos e se dizia cavalheiro da Ordem da Rosa Cruz. Além do mais, tinha um talento especial para contemplar tragédias de bem perto, como quando praticamente presenciou o suicídio da Martinha – um acontecimento traumático para todos nós. Eu só não esperava que ele próprio tivesse protagonizado uma tragédia.

Segundo contou-me, com atraso, o Fábio, o Fernando havia ido ao escritório que ficava no centro da cidade, um sábado à noite, acompanhado da mulher, quando ocorreu a tragédia. Ele estava casado há pouco mais de três meses com uma verdureira que conhecera na feira. A feirante vendia verduras folhosas, como couve, alface, repolho, salsinhas e cebolinhas. Eu a conhecia de vista e sabia que era irmã de um rapaz que embrulhava o pão na padaria da esquina. Algum tempo atrás, numa ida à padaria, quando eu nem suspeitava que ela e o Fernando sequer se conheciam, a encontrei no caixa, enquanto o irmão se dizia o gerente da padaria.

Foi o Fábio, mais uma vez, quem esclareceu os detalhes: com o casamento, o Fernando havia comprado a padaria para a mulher tomar conta, enquanto o cunhado era uma espécie de sócio.

Eu andava às voltas com meus próprios problemas, que não eram poucos nem simples, e não soubera de nada disto. Depois que o Fábio me contou todo o acontecido – o casamento e a morte fatal do Fernando –, fui à padaria, agora com novos olhos, e lá encontrei a viúva no caixa, de short extremamente curto e pernas quase totalmente tatuadas. Mascava chicletes e demorou a me devolver o troco, naquela época em que as caixas registradoras não calculavam automaticamente, como hoje em dia, o “valor recebido” e o “troco”.

No trágico sábado daquele verão de 1992, Fernando havia levado a esposa para conhecer o escritório de publicidade e lá beberem um vinho. Quem teve a ideia de subirem ao telhado, para se refrescarem à beira da caixa d’água naquela noite de sábado extremamente quente de janeiro, ninguém ficou sabendo. O fato é que os bombeiros foram chamados para retirarem o corpo do Fernando, que havia caído dentro da enorme caixa d’água.

Era difícil digerir toda essa história, tanto quanto sabíamos que nunca mais veríamos o Fernando, seus olhos verdes, sua voz suave, seu jeito de menino. Em finais de junho de 1989, começamos a sair mais, eu, ele, o Fábio e a Clara. Houve uma noite de sábado  em que eu e a Clara fomos à casa do Fábio, buscá-lo para sairmos. O Fábio nos esperava já todo arrumado. Aliás, o Fábio nem devia se “arrumar”, pois sempre o víamos com a mesma aparência, o cabelo um pouco grande, partido de lado, barba meio por fazer. Mas o Fernando era diferente. Levava horas se arrumando.

Quando chegamos ao apartamento do Fernando, onde ele morava com os pais e a irmã caçula – Antônia –, ele ainda não havia tomado banho. Abriu a porta e mandou-nos esperá-lo no quarto. Não havia mais ninguém – os pais estavam viajando e a Antônia não ia para casa havia uma semana. As “histórias” de Antônia, aliás, renderiam muitas linhas. Para simplificar, vamos dizer apenas que ela era bem parecida fisicamente com o Fernando, porém de cabelos longos e sem barba. Os olhos verdes eram os mesmos, e tinha tatuagens em um dos braços e pescoço. Segundo dizia a própria, ela já havia feito diversos abortos, e sempre tinha medo de precisar fazer mais algum.

Naquela noite de sábado de fins de junho de 1989, por diversas razões, eu andava precisando me distrair. Sentamos os três na cama do Fernando, aguardando-o, enquanto ele tomava uma ducha. Era um quarto bem agradável, que lembrava mais o quarto de um adolescente, e não de um profissional bem sucedido e já premiado. Embora particularmente eu não fizesse ideia de como fosse o quarto de um “profissional bem sucedido”. Havia cartazes de bandas de rock pelas paredes, e o Fábio colocou o Pink Floyd para tocar baixinho.
 
Quando o Fernando chegou, estava com a toalha de banho enrolada nos cabelos, para não molhá-los. Mas já saíra do banheiro vestido de calça jeans e camiseta. Retirou a toalha dos cabelos e, sentado num banco à nossa frente, começou a secar os pés com a tolha, com gestos vigorosos e rápidos. Serviu-nos uísque, que ficamos bebericando ao som do Pink Floyd. Enquanto calçava o tênis, Fernando mudou de ideia sobre sairmos. Por que não ficávamos por ali mesmo? Estava tão bom...
 
Não lembro ao certo como começamos a nos beijar, mas lembro perfeitamente que a Clara e o Fábio começaram a fazer o mesmo. Lá fora caía uma chuva fria, mas ali, no quarto aconchegante do Fernando, a temperatura subia cada vez mais.

Por via das dúvidas, o Fernando fechou a porta do quarto e ficamos, eu e ele, deitados na cama, escutando, pela terceira ou quarta vez, o disco do Pink Floyd. E nos beijando no escuro. Fábio e Clara, deitados no tapete no chão, pareciam muito íntimos. Na penumbra, não dava para perceber o que faziam, mas, pelo jeito, estavam transando.

Fernando, excitado, beijava-me a orelha, mordia-me os lábios, apalpava-me o zíper da calça, até que o abriu. E ali, na estreita cama de solteiro, grudados e silenciosos, procurando não nos mexermos muito, eu e o Fernando fizemos sexo, e foi muito bom. Depois, saímos algumas vezes mais, mas não voltamos a transar, talvez por mero capricho do destino.

domingo, 19 de outubro de 2014

Um brinde! – Fábio

Era época de eleições quando conheci o Fábio, naquele longínquo 1985. Eu havia acabado de conseguir o meu primeiro estágio, de quatro horas diárias, o qual conciliava com a faculdade. Num final de semana, circulando pelo bairro, encontrei o Fábio em um comitê eleitoral de um candidato a deputado estadual, cujo nome e partido não vem ao caso mencionar.

As eleições de novembro eram a grande sensação de 1985, sobretudo entre os jovens, que ainda não tínhamos votado, sempre dispostos (pré-dispostos?) a militâncias e a novidades. Sem contar que o país apenas começava a sair da ditadura militar, onde imperara, em meio a barbaridades já suficientemente conhecidas, o bipartidarismo, as eleições indiretas do “Colégio Eleitoral” para presidente e os “senadores biônicos”.

O Fábio, 20 anos completos, era o que hoje em dia as pesquisas econômicas estão chamando de “nem-nem” – jovens que nem trabalham nem estudam. Embora fosse culto e inteligente. Gostava de rock e MPB, lia Platão, Freud e Marx. Embora tivesse abandonado os estudos sem completar o segundo grau. Nossas afinidades foram imediatas. Ficamos amigos e, nas manhãs de sábado, o Fábio aparecia na minha porta, jornal debaixo do braço, e me raptava até a pracinha, onde ficávamos um bom pedaço de tempo, esquecidos de tudo e de todos, discutindo as eleições diretas para prefeito, o conceito de super-homem de Nietzsche, as músicas de Caetano. Até mesmo a novela das oito, Roque Santeiro, para nós, a “grande alienação” das massas. Ou ficávamos simplesmente quietos, vendo as crianças brincarem.

O Fábio morava em um apartamento de três quartos com o pai, a mãe, três irmãs e a avó, de modo que ele não tinha um quarto para si e dormia na sala do apartamento da agora já antiga e esquecida “classe média média”. Geralmente, esperávamos todos se recolherem e ficávamos até tarde, na sala-quarto do Fábio, ouvindo música com o volume baixinho no “som três em um”, outra sensação da época. Certa vez, passamos a noite na casa do Fábio, eu, a Clara e a Martinha, pois já era madrugada quando nos lembramos de voltar para casa.

Na manhã seguinte, a mãe do Fábio, ao passar pela sala em direção à cozinha, pareceu um pouco assustada, ou pelo menos ressabiada, quando se deparou com nós três no “quarto” do Fábio, semideitadas nos sofás. Mas serviu-nos café da manhã, completo, e convidou-nos a voltar sempre que quiséssemos. Meses depois, com a morte da avó e, na sequência, do pai, Fábio finalmente herdou um quarto, então pudemos ficar ainda mais à vontade no apartamento daquela família simpática e liberal.

Eu e o Fábio, porém, éramos apenas muito bons amigos, embora muita gente duvidasse, e embora eu realmente nunca tivesse ouvido falar de nenhuma namorada do Fábio, pelo menos algo que fosse sério. Tínhamos muitas afinidades, excelente papo, interesses em comum, mas nenhuma atração sexual. Sólida mesmo era nossa amizade, e era no ombro do Fábio que eu me apoiava, entre um término de “relacionamento”, na linguagem atual, e o começo de outro. Isto até o carnaval de 1988.

Quando nossa amizade fez aniversário de um ano, o Fábio declarou que iria “tomar jeito”. Voltou aos estudos num curso supletivo de seis meses, para terminar o segundo grau. Fez vestibular, entrou numa faculdade e não demorou muito para conseguir também um estágio. O que não nos impedia de nos ver sempre e irmos, todos os finais de semana, num ritual quase sagrado para nós, a todos os bares beber. De fato, tínhamos virado habitués de copo, muito embora o Fábio tivesse alergia a álcool, que o deixava todo vermelho e encaroçado já no terceiro gole.

Naquele carnaval de l988, estávamos justamente bebendo num dos bares da nossa “rota etílica”, junto com uma “galera”, quando chegou alguém espalhando que iríamos todos para a casa da Sandra.

— Quem é Sandra?

Sandra, mãe de quatro filhos, beirando os 40, era uma espécie de “iniciadora sexual” dos rapazes do bairro. Naquele carnaval, havia viajado com a prole, e o atual “marido”, 22 anos de idade, ficara tomando conta das plantas, do aquário e do cachorro.

Ao chegarmos, isto é, quando invadimos a casa, fomos recebidos pelo velho bulldog, que cochilava na varanda. Tudo tão familiar, ordenado, rotineiro, caseiro: o sofá, as almofadas feitas com retalhos, o quarto das crianças. De repente, deslocamentos, pedaços mal encaixados: o tapete na cozinha, as fotos – muitas fotos – pregadas com alfinetes de costura em esteiras penduradas pelas paredes, a cômoda na sala de visitas. Sobre a cômoda, o telegrama: “Impossível telefonar. Muita chuva. Adoramos você”.

Alguém ligou a televisão sem som e colocaram o Pink Floyd, a trilha sonora daquele carnaval particular. Tiraram na sorte, para ver quem ia buscar cerveja. Mas, àquela hora, devia estar tudo fechado. Era carnaval. Matamos a sede com uns restos de vinho e ficamos todos dando risadas, meio bobamente, vendo tevê sem som e ouvindo o Led Zeppellin. As figuras seminuas vestidas de avenida e suor e carnaval, rebolando na tela semi colorida da velha tevê, tinham algo de grotesco, sem saber que sambavam ao som do Led. Depois, alguém trocou o disco e as figuras pareceram mais grotescas, rebolando ao som do Supertramp. Havia Zé Ramalho. Mas quem arriscava colocá-lo?

Um dos casais presentes atirou-se, gargalhando, na cama da dona Sandra e ouviu-se um pequeno estrondo de madeira se partindo. A cama havia quebrado. O marido, zeloso, pôs-se a consertá-la, armado de pregos e martelo no meio da noite. Nem mesmo com isto o bulldog se manifestou, enrijecido de tédio, lá na varanda E foi ao som do metal pesado, pontuado pelas marteladas na cama de casal, que eu e o Fábio, repentinamente, sem quê nem pra quê, começamos a nos beijas com furor, enquanto nos balançávamos numa das redes na varanda.

Quando fui deixar o Fábio em casa – era sempre eu que o deixava em casa, e não ao contrário –, os hormônios ainda estavam à flor da pele, assim como o álcool. Não deu tempo de chegar até o apartamento do Fábio: fizemos sexo na entrada do prédio, no vão da escada que dava para a casa de máquinas. A partir dali, porém, nossos corpos não sabiam mais ficar longe um do outro. Andávamos abraçados pelas ruas, sentávamos juntinhos, de mãos dadas, nos botecos e gastávamos longos minutos nos beijando.

O Fábio vivia bolando planos para conseguir algum lugar “emprestado” com algum amigo onde pudéssemos ficar a sós, bem à vontade. Não queríamos ir a motéis, e o quarto dele estava totalmente fora de cogitação. Ele pensou até mesmo na casa da tal Sandra, mas, ao ser consultado, o “marido” informou ser impossível, visto que ela já havia retornado da viagem com a filharada. Aquela vez sob o vão da escada ficou sendo a única. Não houve tempo para outra.

Quando estava prestes a completar um mês, o “paraíso” que eu e o Fábio havíamos descoberto transformou-se, sem escalas, em inferno: cobranças de lado a lado, ciúmes, recriminações. Não mais nos bastávamos, simplesmente. Queríamos modificar o outro. Raivas e ressentimentos foram se interpondo entre nós. Por isto, refleti durante toda a semana, colocando na balança cuidadosamente tudo o que tínhamos, eu e o Fábio: o namoro e a amizade. Percebi que as duas coisas eram inconciliáveis. Mas qual pesaria mais? No sábado, me pus a caminho da casa do Fábio para juntos decidirmos.

Gastamos uma tarde inteira e um pedaço da noite discutindo, sem brigar, porém, como convinha a dois grandes amigos, duas pessoas quase civilizadas. Volta e meia a mãe do Fábio batia na porta, levando-nos suco, café, ou mesmo sem desculpa nenhuma.  Parecia pressentir o clima estranho que havia se instalado entre nós. Nessa noite não saímos, não fomos a bar nenhum, não encontramos a “galera”. Quando ficou tarde para voltar sozinha para casa, o Fábio, pela primeira vez, foi me deixar. Estávamos imensamente contentes um com o outro. Era o reinício de uma bela amizade que durou mais quatro anos, quando me mudei de cidade.

domingo, 12 de outubro de 2014

A carruagem de fogo – Elias

           Como o profeta bíblico, ele me apareceu numa espécie de carro de fogo que prometia elevar-me aos céus. Só que a tal carruagem de fogo era um velho fusca ao qual faltava o banco da frente, ao lado do motorista, e que era usado como táxi clandestino. Eu ia no banco de trás, meio constrangida, e parávamos em bares afastados, onde, segundo Elias, serviam deliciosos caldos, de todos os sabores. De fato, os caldos – de feijão, de mandioca, verde, e até de mocotó – eram muito bons, sempre enfeitados com muita cebolinha verde. Precisávamos mesmo nos aquecer naquela primavera ainda com os resquícios do inverno. Estávamos em 1988.
Havíamos, eu e Elias, estudado juntos na oitava série e nos reencontramos quase uma década depois numa festa na casa da Margarida, que nem suspeitávamos que era uma amiga em comum. Ficamos nos sondando de longe, como quem não estava reconhecendo um ao outro. Foi o irmão de Elias, Eliandro, quem resolveu a questão, nos apresentando.
— A gente já se conhece, revelou Elias, piscando um olho.
— Verdade? De onde?
— Ih, é uma longa história...
— Looooonga. Uma década?
Estávamos meio bêbados. Aliás, estávamos todos meio bêbados naquela festa.  Quando eu quis ir embora, Elias ofereceu-se para me deixar em casa. No tal táxi clandestino. Pedindo mil desculpas, pois o “carro de passeio” estava na oficina.
Na despedida, perguntou se eu ainda lembrava onde ele morava.
Sim, eu sabia perfeitamente onde o Elias morava: num velho casarão, na esquina de uma rua que ficava a dez quarteirões da minha casa, e que, na época da oitava série, era caminho para a escola.
— Aparece lá no sábado.
— Vai ter alguma coisa?
— Vou estar de bobeira. Vai lá à tarde.
Fomos eu, Margarida – espécie de coringa para todos os eventos –, Letícia, uma prima distante que andava de olho comprido no Eliandro, e a Clara, que namorava o Antonio, mas que, nas horas vagas, estava sempre disponível. Do lado de lá, os irmãos: Elias, Eliandro, Elisalvo e Tiãozinho, o caçula, 18 aninhos, Sebastião, como o pai.
O casarão permanecia com o mesmo aspecto arruinado de há uma década, se não estivesse pior, com suas grades enferrujadas e paredes escurecidas pelo tempo. Quando chegamos, no finalzinho da tarde, Elias terminava de lavar, junto à calçada, o “carro de passeio” – um Karmann Ghia vermelho, com as partes metálicas todas brilhando. Passamos um bom tempo ali, junto ao meio-fio, relembrando histórias da oitava série, enquanto, da casa, vinha o som alto do vinil que Eliandro havia colocado no “som três em um” daquela época. Tocava “Stairway to heaven”, da coleção heavy-metal do Eliandro.  
Finalmente entramos. Estavam todos na sala, bebendo uísque e comendo umas azeitonas graúdas, suculentas, enquanto a televisão ligada mostrava, ao som do Led Zeppelin no “três em um”, uma luta do Maguila a que todos assistiam meio hipnotizados. Só Tiãozinho não bebia uísque, porque gostava mesmo era de cerveja. Foi buscar algumas garrafas no boteco em frente e voltou com uma dúzia, bem gelada.
O “seu” Sebastião – um grande velho muito alto, de longas barbas e rosto vermelho – e a dona Cenira, baixinha e enfezada, com cabelos que um dia tinham sido ruivos e cara de poucos amigos, os pais de Elias, haviam morrido há cerca de dois anos em um acidente de carro, quando iam visitar os parentes no interior. De modo que aqueles órfãos, todos adultos, pareciam tão largados no mundo quanto o velho casarão em ruínas na esquina da rua.
Havia salas dentro de salas e um quarto para cada um dos irmãos. O do Elias estava trancado a cadeado, que ele abriu para nós dois. Mas não ficamos lá. Dentro do quarto, havia uma porta que dava para uma pequena varanda, que por sua vez dava acesso a uma pequena escada de ferro, mambembe e enferrujada, que ia até uma laje onde ficava a imensa caixa d’água. Já era noite fechada. Ficamos ali, deitados de mãos dadas, observando as estrelas, até que ele pousou suavemente a boca sobre a minha e começamos a nos amar. Elias e eu. Eu e Elias! Quando, naqueles idos de 1979, na oitava série, eu poderia pensar que quase dez anos depois seríamos um casal?!
Passamos a nos ver sempre aos sábados e domingos, e já tinha virado verdadeira rotina as tardes de sábado no casarão. À noite, saíamos no fusca sem banco para tomarmos caldos em algum boteco mais afastado. E eu ficava me segurando para não perguntar, sem parecer indiscreta, por que nunca saíamos no Karmann Ghia vermelho, que ficava trancado na garagem, brilhando imponente.
Nunca nos víamos durante a semana. Elias tinha o táxi clandestino e também um pequeno escritório de “representação comercial” num velho prédio no centro antigo da cidade. Eu trabalhava o dia inteiro e, à noite, alternava umas matérias na faculdade com o curso de inglês. Mas numa quarta-feira, quando me preparava para ir para a faculdade, ele me ligou do escritório. Curiosa, perguntei se poderia ir até lá. Queria conhecer o local. Elias demorou um pouco para responder, mas acabou me passando o endereço.
O prédio não tinha elevador, de modo que subi a escada, tipo “3E” – estreita, escura e empoeirada –, até o segundo andar. O escritório era bem modesto. Elias era seu próprio patrão e empregado, secretária e contador, office-boy e arquivista. Após servir-nos um café já meio frio, ele começou a retirar, meticulosamente, os objetos de sobre a mesa enorme: a bandeja com papeis, o telefone – que ele colocou ao pé, no chão –, uma máquina de escrever manual. Só percebi a intenção quando ele, sempre com muito método, começou a desabotoar os botões da camisa, iniciando pelos punhos das longas mangas. Na sequência, passou a tirar-me a roupa lentamente, com gestos ao mesmo tempo delicados e ousados, que me deixavam louca.
Já era um pouco tarde quando deixamos o prédio. Ao passarmos pela garagem para pegar o táxi clandestino, o vigia olhou-nos de esguelha, mas chamou Elias de doutor quando abriu o portão para sairmos. “Até amanhã, doutor”. Comemos alguma coisa ali por perto, num lugar cheirando a fritura, e depois ele me deixou em casa.
— Está entregue, disse, ao estacionar o fusca em frente à minha porta.
Na quarta-feira seguinte, ao chegar à faculdade, soube que não iria haver aula. O professor tinha avisado, na semana passada, que daria uma palestra num seminário em Foz do Iguaçu. Seminário em Foz do Iguaçu! Faziam seminário em cada lugar!
Embora tivesse estado com o Elias no final de semana, deu-me uma vontade louca de vê-lo. Consultei o relógio, mas já era tarde para ir até o escritório. Provavelmente, não o encontraria mais lá. No caminho de casa, resolvi ir até o casarão.
Quieto, imerso em escuridão quase completa, o velho casarão parecia ainda mais sombrio e desolado àquela hora da noite. Não havia campainha, de forma que esperei um tempinho até que aparecesse alguém. Veio o Eliandro e disse que o Elias não estava, que tinha viajado.
— Viajou? Para onde?
— É coisa rápida, de trabalho. Sábado ele está de volta.
Sábado quem voltou fui eu, ao casarão. Eliandro, sentado no meio-fio, levantou-se logo que me viu e me chamou para irmos ao bar em frente.
Pedimos duas Pepsis, que vieram nas garrafas de vidro que a indústria da época utilizava. Parecia que há séculos ninguém pedia Pepsi naquele bar. Uma fumaça gelada se exalou do gargalo quando as garrafas foram abertas.
— E o Elias? Chegou?
Eliandro cravou em mim seus olhos profundamente azuis.
— Quero te falar uma coisa, porque acho que você está levando o Elias muito a sério.
Quis desmentir, “que nada, é só um casinho bobo”, mas achei melhor ficar quieta. De chofre, Eliandro disse que Elias tinha mulher e filho.
— Uma, não. Duas.
            —  Duas filhas?, quis saber.
            — Não. Duas mulheres, esclareceu ele.
E logo detalhou: com uma das mulheres, Elias tinha uma filha de seis anos, que nasceu quando ele tinha 18. A outra estava grávida de oito meses. De segunda a quarta, morava com uma. De quinta até o almoço do sábado, com a outra, a grávida. O resto, eu já sabia.
Nunca entendi muito bem por que Eliandro me contou aquilo. O fato é que Elias não negou, quando finalmente aceitei conversar com ele no fusca-táxi na esquina da minha casa, após várias noites em que ele, decidido, me esperava chegar em casa, na volta da faculdade.
Elias parecia não atinar por que motivo eu não queria ser mais uma “outra”.
— Temos as tardes de sábado e os domingos só para nós, argumentou ele.
Algum tempo depois, sábado à tarde, geladeira vazia, fui ao supermercado e, na seção de produtos infantis, encontrei o Elias, comprando um carrinho de bebê. O filho havia nascido. Era um menino.

domingo, 5 de outubro de 2014

O baile de carnaval – Claudio


          

Agosto de 1986. Consegui umas “férias de estagiária”, de cinco dias, e me pus a caminho da cidade do Claudio. Havia um assunto pendente entre nós, que urgia resolver.


Eu havia conhecido o Claudio no réveillon de 1984, virada para 1985, quando passava férias na casa da minha prima Letícia, que nessa época morava na mesma cidade do Claudio.

O réveillon foi no pequeno apartamento da Letícia, e, para quem mal havia completado dezenove anos de idade, parecia um grande acontecimento. É que estávamos sozinhas, eu, Letícia e Joana, sua irmã. E íamos dar uma festa!

As meninas tinham muitos amigos e não foi difícil encontrar convidados para aquela que prometia ser uma verdadeira “festa de arromba”. Na véspera, fomos ao supermercado e compramos o “combustível”: várias garrafas de vodka, rum bacardi, martini e alguns vinhos, que foram devidamente estocadas no quartinho de empregada junto à cozinha, o qual fazia às vezes de copa. Também não podia faltar uma boa cachaça para a caipirinha. Letícia encomendou salgadinhos numa padaria e também fizemos alguns canapés de sardinha. Era horrível, mas muito usado na época, e bem fácil de fazer. Bastava amassar sardinhas enlatadas com maionese e passar nas fatias de pão de forma cortadas ao meio, em triângulo. Havia outro salgadinho imbatível: o capetinha, também conhecido por “sacanagem”. Este era feito com palitos em que eram espetados pequenos cubos de queijo, rodelas de salsicha e azeitonas.

Letícia e Joana tinham namorado, mas só falavam no Claudio, um amigo de 22 anos de idade, universitário e professor num cursinho de inglês. Queriam muito me apresentar o Claudio, o Claudio isso, o Claudio aquilo, o que me atiçava a curiosidade.

À noite, enquanto me arrumava no quarto da Letícia para a festa, percebi que sequer tinha uma roupa decente para a ocasião. Vesti um tomara-que-caia branco já não tão novo e coloquei uma faixa colorida em volta dos cabelos longos, um pouco quebradiços e rebeldes por causa da água salgada do mar. Para calçar, sandálias rasteirinhas.

Nada como ter dezenove anos! O visual ficou ótimo, nem batom precisava passar!

A campainha tocou. Os convidados enfim começavam a aparecer. Quem seria?

Quando cheguei à sala, fui apresentada, com uma mal disfarçada euforia, ao Claudio, o primeiro a chegar, antes mesmo dos namorados da Letícia e da Joana.

Ele era bonito. Alto, com os cabelos negros presos num rabo de cavalo, exibia seu recém adquirido bronzeado numa camiseta regata, que deixava seus braços bem torneados à mostra.

Era muito bonito, sem dúvida. Mas, ao vê-lo, nada em mim se mexeu fora do lugar. Não senti tesão, ou simpatia, ou mesmo amizade. Talvez por causa do Victor, que eu ainda não conseguira esquecer, motivo de estar ali, naquelas férias meio malucas. Letícia e Joana sumiram, e ficamos eu e o Claudio, largados ali no sofá, meio sem saber o que fazer ou dizer, ensaiando um arremedo de diálogo. Então a campainha tocou novamente.

E um a um os convivas foram chegando, o volume do som de vinil foi aos poucos aumentando. A bebida começou a rolar junto com os capetinhas – ou “sacanagem”. Alguns dos rapazes se queixaram de não haver cerveja – uma imperdoável falha nossa, que sequer cogitamos em comprar. Três deles foram buscar uns engradados sabe-se lá onde, e a festa prosseguiu, bem animada.

Tocava Os Beatles, isto é, berravam Os Beatles, quando, a certa altura, chegou uma amiga das minhas primas, chamada Betânia, que era simplesmente um escândalo, rechonchuda, peituda, enfim, boazuda que era essa Betânia. Eu, magricela e sem peito, naqueles tempos sem o upgrade do silicone, fiquei acuada. Não lembro como, fomos parar, eu, a Betânia, a Letícia e a Joana, no quartinho-copa onde estavam as bebidas. A Betânia era chegada num vinho. E ficamos as quatro ali, bebericando e montando mais “sacanagens” – o salgadinho –, quando chega o Claudio, com um copo de caipirinha na mão.

A Betânia subitamente passou a dominar o papo e percebi um clima meio tenso entre ela e o Claudio. Uma conversa esquisita, cheia de indiretas e mal acobertadas mágoas e cobranças. Talvez até acusações, embora sutis, de algo que só eles sabiam. Letícia e Joana, já altas, caíam na risada. Eu saí de fininho e voltei para a sala. Quando dei por mim, o Claudio estava novamente ao meu lado, no velho sofá verde, que combinava com o tapete, que também era verde.

— Ué, deixou sua amiga sozinha?, perguntei.

— Ela não é minha amiga. Quero ficar com você.

Entendi não entendendo aquele “quero ficar com você”, mas a meia-noite se aproximava, e todos começavam a contar o tradicional dez-nove-oito, etc., de forma que nos juntamos aos outros para estourar o champanhe e desejar “Feliz Ano Novo”. Todos de branco, fizemos uma imensa roda, onde demos as mãos, alguns em verdadeiro transe, de olhos fechados, certamente fazendo promessas para o 1985 que já se iniciava.

E a festa continuava. Mas, depois do ritual da meia-noite, tudo pareceu se acalmar. As pessoas já não pulavam tão frenéticas – antes, caíam exaustas pelos cantos disponíveis. E o Claudio sempre ao meu lado, os dois encostados numa parede, sentados a um canto da sala. Da mesma forma que vieram, os convivas se foram, um a um. O dia já amanhecia – um dia quente de primeiro de janeiro de 1985. No quarto da Letícia, Letícia com o namorado. No quarto da Joana, a Joana com o namorado. Quando finalmente ficamos só nós, eu e o Claudio, a sós na sala, começamos a nos beijar. Um beijo morno como o dia que começava, abafado e quente.

Por volta das sete horas da manhã, depois de muito chove-não molha, o Claudio resolveu finalmente ir embora, não sem antes tomar um café bem forte para rebater a ressaca. Mas, no final da tarde daquele primeiro de janeiro, para minha surpresa, ele retornou. Fiquei na casa da Letícia até o carnaval e poucos foram os dias em que o Claudio não apareceu. Letícia e Joana, cúmplices, atendiam a campainha e “sumiam”. E eu e o Claudio, num eterno chove-não-molha no sofá da sala. Quer dizer, nem tão chove, nem tão molha assim. Às vezes, o Claudio se atrevia a levantar minha blusa, ou minha saia. E me beijava os peitos, lambia meus mamilos. Um dia, não se segurou e.... Teve uma ejaculação precoce. Letícia o viu sair, de pernas meio abertas, andando como se estivesse mancando, e não aguentou – caiu na risada.

Às vezes, eu e o Claudio saíamos para um breve passeio na orla, para ver o pôr-do-sol, tomar uma água de coco. E logo retornávamos ao sofá verde de Letícia. Como diz aquele ditado: “água mole em pedra dura...”. Quando o carnaval se aproximava, o Claudio colocou-me a par dos seus planos: iria me levar para o apartamento de um irmão seu, casado e pai de dois filhos, que ia viajar com a família no carnaval. E deixaria a chave com ele!

Como dizem por aí, o homem põe e Deus dispõe. Ou será o diabo? O fato é que os planos do Claudio fizeram água. O pai da Letícia, meu tio Olívio, brabo como só ele, viúvo e religioso ao extremo, telefonou, avisando que ia passar o carnaval com a gente. Os namorados de Letícia e Joana sumiram. Assim como o Claudio.

Voltei para casa na quarta-feira de cinzas, após passar todo o carnaval escutando o barulho infernal e sem trégua de um clube da vizinhança. “Alá Lá ô, ô ô, ô.... Mas que calor ô ô ô”. Ou então “Mamãe eu quero, mamãe eu quero”, enquanto o tio Olívio, esticado no sofá verde, enxugava uma garrafa de uísque, que ele havia levado. Nem podia sonhar com o nosso super estoque do quartinho!

Por isso, naqueles poucos dias de agosto de 1986, eu e o Claudio tínhamos alguns assuntos pendentes para tratar.

Quando nos revimos, parecia que o tempo havia parado. Era o mesmíssimo Claudio, de rabo de cavalo e camiseta regata branca. Passamos o dia na praia e, na volta, sem meias palavras ou chove-não-molha algum, fomos direto a um motel. Da soleira da porta do quarto, nos vimos refletidos num grande espelho no qual faltava um pedaço num dos cantos inferiores. Claudio caminhou até o espelho, parecendo querer penetrar no mundo invertido do outro ele que o olhava fascinado de dentro da moldura falhada. Em frente ao espelho embaçado, ele parecia refletir e, através do espelho, o que o poupava de virar o pescoço, perguntou-me se molhava o cabelo, sempre amarrado no eterno rabo de cavalo.

Deitada na cama, sentindo a pele arder do sol da praia, de olhos fechados, eu escutava o pinicar da água do chuveiro, enquanto o Claudio tomava uma ducha. Não o vi sair do banheiro, mas senti sua respiração quente, e abri os olhos, quando ele se aproximou mais. Constatei que ele não molhara o cabelo. Ele segurava desajeitado a toalha em volta da cintura e, ainda completamente molhado, atirou-se sobre mim, enquanto a toalha, silenciosa, tombava surdamente no chão.

Era já noite alta, as luzes todas acesas nas ruas, nos bares, nos restaurantes, nas portas do teatro, quando deixamos o motel com a “missão cumprida".

Carnaval seguinte, de 1987, não é que me apareceu o Claudio, agora na minha cidade?