sábado, 17 de junho de 2017

Outro adendo – agora sobre camas


Relembrando a minha história com o Rodrigo e o triste fim da nossa tão desejada cama de casal, que um dia (há quanto tempo?) enfeitei com tanto gosto, com delicadas almofadas em forma de coração, e que, vinte anos depois, se transformou na mais completa ruína, vem-me à mente outra cama, também de casal, mas da qual tratei de fugir como – dizem por aí – o diabo foge da cruz.

Foi Celso quem a providenciou.

Uma das vezes  em que ele foi me buscar na faculdade, quando chegamos ao seu cafofo, Celso, fazendo mistérios, tapou meus olhos e levou-me ao quarto, para me mostrar “a surpresa”. Não era propriamente uma “cama”, mas um colchão de casal, muito largo e alto. De molas. Beijando minha boca, ele empurrou-me suavemente sobre aquele colchão, onde não faltavam travesseiros e lençois macios, ao mesmo tempo em que perguntava se eu havia gostado da nossa cama de casal.

É que até então as nossas transas rolavam numa apertada cama de solteiro, encostada na parede. Às vezes também no colchão da cama, que o Celso colocava no chão, para ganhar mais espaço.

Ele parecia orgulhoso do seu feito.

Está bem, confesso. Estreei aquela “cama” com certo furor e grande prazer de ver o prazer do Celso com aquele colchão enorme, que ocupava quase todo o chão do quarto. E tão macio, tão...

Porém, ao ir embora, enquanto me calçava, olhei mais uma vez aquela “cama de casal”, desta vez sem nenhum entusiasmo.

             Dei um tempo, como dizem. Sumi vários e vários dias. E, quando finalmente retornei ao apê do Celso, o encontrei ocupado demais, e surdo demais, para que pudesse me abrir a porta.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Um certo capitão Rodrigo


Todos os dias, a caminho do trabalho, de manhã bem cedo, eu me punha a namorar. Namorava uma cama de casal, de madeira trabalhada, que ficava exposta numa loja de móveis, numa esquina a duas quadras de casa.

Era uma bela cama. E como eu a almejava!

Então, qual não foi a minha surpresa ao chegar em casa após um dia exaustivo, entrar no quarto e dar de cara com ela, a cama dos meus sonhos acordados!

Pelo visto, o Rodrigo também andava de olho na mesma cama e, sem falarmos nada sobre o assunto – até então, após um mês de vida marital, estávamos dormindo num colchonete de casal, fino como uma omelete sem recheio –, tivemos o mesmo pensamento. Era a mesma cama, sem dúvida. Aliás, só havia ela na loja, eu já andara por lá me informando. De madeira maciça, feita artesanalmente. E agora estava no meu quarto!

Forramos a “nossa” cama com cobertores, e no dia seguinte – partiu lojas de lençois. E fronhas também. Para cobrir a cama nova, comprei uma colcha cor de rosa, que enfeitei com almofadas em forma de coração. Um luxo!

O quarto ficou um aconchego só. Eu, que nunca havia pensado que algum dia levaria vida de casada.

(Mas também jamais pensaria que aquela mesma cama seria partilhada, na minha ausência, com mulheres que, para mim, estavam acima de qualquer suspeita.)

O fato é que, diante de tal guinada na história da minha vida, eu fiquei completamente cega, não conseguia distinguir a verdade, a menos de um metro do meu nariz.

Este longo capítulo da minha história de vida, que aqui será encurtado e bem reduzido, também poderia se chamar “Memórias do Cárcere”. Durou exatos vinte anos, durante os quais vivi encarcerada, ora literalmente, ora pelos laços desvairados da paixão e da loucura, às vezes bem parecidos com os do amor e do ódio. Também vivi de olhos vendados, em parte voluntariamente, quem sabe? Talvez não quisesse acreditar naquilo que meus sentidos intuitivamente procuravam me alertar. Um perfume diferente no ar, vestígios aqui e ali, roupas desaparecidas – principalmente cuecas...

Até que, exatos vinte anos depois – era dia de São Jorge, o Santo Guerreiro, quando decidimos nos acertar e “juntar os trapos”, e também agora, feriado, em que eu resolvera, em homenagem ao santo, preparar um bacalhau ao forno. Agora, nesse mesmo instante em que o prato, entre folhas de alface e taças de vinho, esfriava sobre a mesa, enquanto a verdade, que sempre esteve ali, silenciosa, finalmente se impunha, nua e crua, aos meus olhos. Eu não poderia mais deixar de vê-la. Ou mesma negar-me a enxergá-la. Em poucos instantes, passamos da alegria, que agora se revelava o que sempre fora, afinal de contas, pura ficção e falsidade, para o mais completo desespero. “A casa caiu”, diriam depois.

O fato é que aquilo que já vinha lentamente se corroendo e apodrecendo – uma palavra mal colocada, críticas recíprocas, filhos de permeio, apartando o bate-boca –, rompeu-se de vez, com a revelação (ou seria mera constatação?) da existência dela, “a amante”. Ou seria “segunda esposa”? Afinal, desde o início, lá estava ela, participando e partilhando de tudo, da mesa, dos bares, das músicas, das festas. E também da cama. Da minha cama! Dentro do meu próprio quarto! Na minha casa! Só eu que não via. Mas, naquele dia, a revelação crua, de chofre, soterrou para sempre aqueles vinte anos, que subitamente se tornaram meros escombros um tanto nebulosos.

Assim foi com a cama. Depois de passado o estardalhaço, quando tudo se resolveu enfim, não sem traumas – a saída definitiva do Rodrigo –, era preciso também dar uma destinação à cama. Contratei um senhor para recolhê-la, e foi durante a desmontagem da cama que percebi toda a ruína que ela representava. Não, não era mais a mesma cama, que com tanta alegria a recebi em meu quarto, no mais íntimo do meu ser. A madeira, envelhecida, estava muito ressecada, com uma aparência triste, de quem carrega todo o peso do tempo. Um encaixe da lateral havia se soltado e nunca foi consertado. O Rodrigo simplesmente amarrou um trapo para segurar o estrado do colchão e ficou aquele improviso durante anos e anos. A cabeceira tinha pingos de tinta aqui e ali, da última pintura das paredes do quarto. Há quantos anos mesmo? Só agora eu via de fato todo o simbolismo que aquela cama, um dia tão bela e prazerosa, e agora totalmente em ruínas, tinha na minha vida. Urgia livrar-me dela.

Eu olhava a cama, saindo aos pedaços, em ruínas. Tal como eu saía daquele relacionamento com o Rodrigo. E constatava o inevitável: que eu havia sido mais feliz, com o Rodrigo, sem aquela cama em nossas vidas. Sim, quando o conheci, e perdi a cabeça, a compostura, e, de certa forma, até mesmo a decência, tudo era cama para nós, de madrugada, na rua: o banco no canto mais escuro da pracinha deserta, o lado não iluminado de um poste, o cantinho de areia que formava uma pequena duna à beira da praia, o jardim de uma casa abandonada, até mesmo a roda gigante do parquinho totalmente às escuras àquela hora em que as crianças, inocentes, dormiam com os anjos. Ficávamos em silêncio, um silêncio profundo, nos olhando, olho no olho, e de repente nos atracávamos, onde quer que estivéssemos. Cobertos pelas estrelas e pelo manto da luz da lua, amávamo-nos com furor, insaciavelmente. O Fábio, que acompanhou o início de nossos encontros (aliás, foi o Fábio que nos apresentou), era testemunha daqueles arroubos enlouquecidos, que sempre terminavam com o Rodrigo me levando nos braços e me depositando com cuidado na porta de casa.

        Eram tempos em que saíamos para ver a lua, beber vinho, tocar violão. Talvez, os únicos bons tempos que vivemos, antes daquelas longas duas décadas, que terminaram abruptamente, de forma tão bestial.