sexta-feira, 27 de maio de 2016

Tony e o pássaro engaiolado

Definitivamente, ando saudosa de mim. Ou melhor, daquela garota que não tinha medo de nada, que ficava trancada horas numa biblioteca, estudando, ou que chegava em casa de manhã, após uma peregrinação etílico-sexual pela noite afora.
Hoje, tenho medo de tudo, até mesmo de chegar à janela do quarto e uma bala perdida me encontrar. Em compensação, perdi outros medos, como o de morrer e o de almas do outro mundo. Tenho muito mais medo das almas deste mundo mesmo. Não creio na humanidade, nem na cura do câncer. Estamos todos condenados.

Quando conheci o Tony, ainda era bastante destemida. Diziam que era um sujeito perigoso. Mas como crer nisso, diante daquele baixinho de metro e meio de altura, longos cabelos amarrados num rabo-de-cavalo e que levava, onde quer que fosse, uma gaiola com um melro?
Tarde chuvosa do verão de 1989.
Eu, o Fábio, a Margarida, sentados à mesa de um bar bem longe de casa, quando ele parou, de passagem, pousando a gaiola com o pássaro no chão ao lado da mesa. Estava indo à padaria, buscar leite para o filho pequeno, de um aninho de idade. Mesmo assim, concordou, após alguma insistência do Fábio, em tomar um gole da “branquinha”.
— Só para espantar o friozinho, disse, esfregando as mãos.
Depois que ele se foi, o Fábio contou-nos sua história: vivia com uma mulher bem mais velha, que de repente engravidara, não lhe deixando outra alternativa que assumir o “lance” e o filho.
Particularmente, eu queria mesmo era saber por que aquele baixinho de vinte e oito anos, dono daquele simpático melro na gaiola, tinha fama de ser um cara perigoso. Fábio quase se engasgou, gargalhando. E contou que o Tony era um X-9. “X-9?”.  É como chamam os delatores que passam informações para a polícia, em troca de algum trocado.
— Na verdade, ele nem é tão perigoso. É ele que corre mais perigo, sentenciou o Fábio, virando mais um gole da branquinha, enquanto eu e a Margarida pedíamos mais um chope.
No sábado seguinte, à noite, fomos eu, Fábio e Margarida – estávamos ficando quase inseparáveis, cada um à sua maneira e por diferentes motivos, afogando as próprias mágoas no álcool –, para um outro bar, muito mais longe ainda de casa. E demos de cara com o Tony, que, sem nenhuma cerimônia, sentou-se à nossa mesa. Era convidado do Fábio.
Às vezes o Fábio pregava essas peças. Convidava algum amigo que eu não conhecia, só para ver até que ponto eu resistiria! Se resistiria...
Desta vez o Tony estava sem a gaiola com o melro. E não mencionou o filho, nem ninguém perguntou nada. Ficamos todos bebendo, nos embebedando, até que fomos para outro bar, onde havia dança.
E o Tony pendurou-se em mim, literalmente, a noite toda.
Ele vestia um casaco de couro preto, e parecia ter passado gel nos cabelos, bem presos para trás. Tinha uns olhos amendoados que, ali, à meia penumbra, me pareceram muito brilhantes, quase claros.
Sim, nos beijamos, freneticamente, mais para provar o gosto um do outro, do que por qualquer outra coisa. E fomos embora, já era quase madrugada. Cada um para sua casa. E o Tony servindo de motorista, com o seu velho Corcel enferrujado.

Passaram-se meses – muitos meses, durante os quais eu estava num relacionamento tão intenso quanto conturbado com “um certo capitão Rodrigo” –, sem que eu sequer lembrasse do Tony ou do que havia sido feito dele, após aquela noitada totalmente sem sentido. Porém, certa vez em que eu e o Rodrigo tivemos uma briga séria, que pôs um fim irrevogável à nossa história (assim pensava eu), de repente lembrei do Tony. Por onde andariam, ele e o passarinho na gaiola?
Liguei para o Tony, no trabalho, claro, que ele não dera o número de casa, por motivos óbvios, e também, naqueles tempos, ainda não havia essa oitava maravilha chamada celular, que só viraria realidade cerca de uma década depois. O Tony pareceu um tanto indiferente, ou pelo menos evasivo, ao telefone. Disse que estava no trabalho – eu sabia, claro –, uma fábrica de roupas que ficava num lugar muito distante – isto, eu não sabia. Sempre fui curiosa, já relatei isto em algum outro lugar, e fiquei me ardendo para conhecer a tal fábrica de roupas. “Posso ir aí?”. Eram uma duas horas da tarde. Ele ficou em silêncio uns instantes e finalmente disse “tudo bem. Sabe onde é?”. Eu não fazia a menor ideia de como chegar naquele lugar, mas o Tony me deu todas as coordenadas – naquele tempo também não havia Google Maps nem GPS.
Peguei um ônibus, depois o trem e mais outro ônibus rumo ao desconhecido. Mas, naquele tempo – também já escrevi isso antes –, eu ainda era bem destemida, do alto dos meus vinte e quatro anos.
Finalmente, cheguei a um local semi deserto que, disseram, não distava muito de um presídio de segurança máxima. Mas a tal fábrica de roupas estava mesmo lá, tal como o Tony dissera. Enorme, toda cercada por altos muros e arames eletrificados.
Já na entrada, fui recebida com certa deferência, quando citei o nome da pessoa a quem procurava. Um segurança me levou ao segundo andar do prédio, onde uma secretária disse que “o doutor Antonio lhe aguarda”. Ele recebeu-me com refrigerantes – não bebia café – numa sala com um ar condicionado extremamente frio. Era o gerente daquela fábrica. Depois, levou-me para dar uma volta pelo local. “Já esteve numa fábrica de roupas antes?”.
Do corredor do segundo andar, podia-se ver as operárias lá embaixo, numa espécie de amplo galpão, cada uma sentada à sua máquina industrial. Eram centenas delas, um ou outro homem quebrando aqui e ali o monopólio feminino. As operárias recebiam as peças já cortadas, passavam uma costura e entregavam a peça à próxima, que iria fazer os arremates e passar adiante, para aplicação de bolsos e botões numa máquina automatizada. Uma produção febril de calças jeans, e tantas, e todas absolutamente iguais, que fiquei tonta. Senti-me grata comigo mesma por estar usando uma calça preta de algodão e uma camisa artesanal, bem colorida, peças que não se assemelhavam em nada com a produção massiva de jeans que eu estava tendo a oportunidade de presenciar.
Ao longo do corredor, pude perceber, havia vários inspetores, que fiscalizavam, de pontos estratégicos, o trabalho das operárias. Até que a sirene tocou – eram cinco horas da tarde – e imediatamente as operárias largaram suas máquinas e foram bater o cartão do ponto. O expediente daquele dia havia acabado. Tony aguardou até o burburinho terminar, e ficamos, eu, ele e apenas um dos seguranças, sozinhos naquela imensidão. Até que o acompanhei ao estacionamento, onde entramos, eu e ele, no velho Corcel enferrujado.
No trajeto, eu me perguntava se aquela história de X-9 tinha algum fundo de verdade, ou se era apenas lenda, baseada em fofocas, quando o Tony interrompeu meus pensamentos.
“Deixo você em casa, ou tomamos antes um drinque?”, perguntou. Era um final de tarde de sexta-feira, hora propícia para um happy hour. Não respondi logo, e nem precisou. Mais à frente, paramos num bar próximo da fábrica, onde tomamos alguns chopes. Que tempos aqueles, em que não havia Lei Seca! O Tony, porém, bebeu pouco. Voltamos ao Corcel, e seguimos direto para um motel, que ficava a meio caminho da fábrica e da minha casa.
Mal chegamos ao quarto, nos atracamos desesperadamente, nos embolando nos cabelos um do outro. Passado o primeiro instante, faltava-nos fôlego, enquanto sobrava tesão. Quem diria, eu e aquele baixinho de metro e meio, e um pau que...
Depois, ficamos fumando e curtindo a musiquinha do rádio do motel, até que o Tony levantou-se para ir ao banheiro. Estiquei o braço para apagar o cigarro no cinzeiro, e aproveitei para ficar bem relaxada, de bruços, descansando. O Tony saiu do banheiro e veio vindo por cima de mim, massageando-me as nádegas com vigor. Com extrema delicadeza, afastou com sua mão pequena os meus cabelos, espalhados pelas costas e ombros, e começou a beijar-me a nuca, descendo vagarosamente, deliciosamente, sua língua grossa e úmida por minhas costas.
A essa altura, eu já estava novamente toda excitada, desejando mais que nunca a penetração. Ele então montou nos meus quadris e foi penetrando com suavidade e firmeza seu pequeno pau na minha bunda. Eu gemia de prazer. Foi a primeira vez que fiz sexo anal, se é que sexo anal era daquele jeito que se fazia, com um pau que mais lembrava o pássaro engaiolado do Tony que, agora, cantava, e cantava, e cantava... dentro de mim.
 Foi boooooommmmm.
Cheguei em casa à hora em que, geralmente, costumava sair – por volta de dez, dez e meia da noite, com o cabelo desgrenhado e úmido.

Não tornei a ver o Tony, nem sequer nos ligamos. O Fábio não suspeitava de modo algum do que acontecera – e jamais saberia, pelo menos da minha parte. Mas imagino que o Tony também não contou nada, senão o Fábio não teria deixado passar, sem algum comentário invejoso e maldoso.

O fato é que, cerca de dois anos depois, recebi um convite de casamento. Era do Tony, que iria se casar com uma mulher uns cinco anos mais nova que ele, numa igreja evangélica, com direito a música gospel e pajens, mas, porém, sem uma gota sequer de álcool. Como não poderia deixar de ser, fomos ao casório, eu e o Fábio.

A noiva estava grávida.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Um adendo

A minha história com o Elias, contada no post “A carruagem de fogo”, não terminou no supermercado em que nos encontramos, por acaso, quando ele foi comprar um carrinho de bebê para o filho recém nascido. Também não continuou no velho casarão arruinado, ou no escritório mambembe, nem em motéis ou qualquer outro lugar do mundo. Mas teve um adendo, que durou cerca de quinze ou vinte minutos, dentro do velho taxi pirata – o fusca sem o banco do carona, ao lado do motorista –, quase três anos após o nosso último encontro casual no supermercado.
Às sete e pouca da noite – uma noite pesada de inverno, sem lua, sem vinho, sem violão –, eu voltava da padaria, quando avistei, parado na esquina de casa, como um bicho à espreita, o velho fusca do Elias. O Rodrigo me esperava em casa, com a nossa bebê de apenas oito meses de idade. Mas fiquei surpresa ao encontrar o Elias ali, quase à minha porta, me esperando para conversarmos. Surpresa e curiosa.
Nunca mais, desde aquele dia no supermercado, tinha visto o Elias. Ele parecia muito bem. As faces rosadas de sempre, contrastando com os cabelos negros em desalinho, os olhos vivos, tal como eu o conhecera quando tínhamos quatorze anos. Na oitava série.
Ele soubera que eu tinha tido uma filha com o Rodrigo. Sabia também que não morávamos juntos. Mas tinha ouvido falar que eu ia me mudar de cidade, junto com o Rodrigo, e queria saber se era mesmo verdade. Queria ouvir da minha própria boca.
Sim, era de fato verdade. Eu e o Rodrigo havíamos resolvido ir morar juntos, mudar de cidade, de vida e de ares. Íamos criar nossa filha juntos, enfim.
— Por quê?!
Elias me olhava com um olhar incerto, duvidando daquilo que, para mim, era absolutamente indubitável. Era isto mesmo o que eu ia fazer. Sim, senhor.
Elias estava muito bem informado. Da minha parte, o olhava como a um completo estranho, que era exatamente isto o que ele havia se tornado para mim.
— Tem certeza? Você e o Rodrigo... vão dar certo?
Eu não entendia aquela conversa, toda aquela preocupação. Há tempos que eu não via o Elias. Nem sequer me lembrava dele. Nem de nada do que havíamos vivido.
— Só queria saber se você vai mesmo ficar bem.
Lembrei do filho, da filha e das duas mulheres do Elias. Talvez houvesse mais filhos, mais mulheres? Mas não perguntei nada. Não queria me envolver, nem dar brechas para que ele se metesse na minha história com o Rodrigo. Afinal, o que ele tinha a ver com isso?
— De onde você conhece o Rodrigo?, perguntei subitamente, pois até aquele instante, nunca havia me ocorrido que os dois pudessem ser amigos, ou ao menos conhecidos.
Elias me olhava como se tivesse muitas coisas a me dizer, presas nos lábios finos e muito vermelhos, prestes a explodir. Coisas terríveis, talvez, a respeito, quem sabe, do Rodrigo? Mas não falou mais nada.
Bem, não posso dizer que ninguém, em tempo algum, jamais se preocupou comigo, porque não seria verdade. Naquele instante, sem quê nem para quê, Elias apareceu do nada, numa noite fria, para dizer que se preocupava comigo, que queria saber se eu ficaria bem.
— Preciso ir, falei. Minha filha está me esperando. Ela e o pai estão me esperando, frisei.
Elias assentiu com um gesto de cabeça, e abriu a porta do fusca, me libertando. Aquela sim, foi a última vez que o vi, há quase vinte e quatro anos passados. Enquanto abria o portão de casa, via o fusca se afastar, descendo lentamente a rua íngreme, forrada de seixos pontiagudos.