Todos os dias, a caminho do trabalho, de
manhã bem cedo, eu me punha a namorar. Namorava uma cama de casal, de madeira
trabalhada, que ficava exposta numa loja de móveis, numa esquina a duas quadras
de casa.
Era uma bela cama. E como eu a almejava!
Então, qual não foi a minha surpresa ao
chegar em casa após um dia exaustivo, entrar no quarto e dar de cara com ela, a
cama dos meus sonhos acordados!
Pelo visto, o Rodrigo também andava de
olho na mesma cama e, sem falarmos nada sobre o assunto – até então, após um
mês de vida marital, estávamos dormindo num colchonete de casal, fino como uma
omelete sem recheio –, tivemos o mesmo pensamento. Era a mesma cama, sem
dúvida. Aliás, só havia ela na loja, eu já andara por lá me informando. De
madeira maciça, feita artesanalmente. E agora estava no meu quarto!
Forramos a “nossa” cama com cobertores,
e no dia seguinte – partiu lojas de lençois. E fronhas também. Para cobrir a
cama nova, comprei uma colcha cor de rosa, que enfeitei com almofadas em forma
de coração. Um luxo!
O quarto ficou um aconchego só. Eu, que
nunca havia pensado que algum dia levaria vida de casada.
(Mas também jamais pensaria que aquela
mesma cama seria partilhada, na minha ausência, com mulheres que, para mim,
estavam acima de qualquer suspeita.)
O fato é que, diante de tal guinada na
história da minha vida, eu fiquei completamente cega, não conseguia distinguir
a verdade, a menos de um metro do meu nariz.
Este longo capítulo da minha história de
vida, que aqui será encurtado e bem reduzido, também poderia se chamar
“Memórias do Cárcere”. Durou exatos vinte anos, durante os quais vivi
encarcerada, ora literalmente, ora pelos laços desvairados da paixão e da
loucura, às vezes bem parecidos com os do amor e do ódio. Também vivi de olhos
vendados, em parte voluntariamente, quem sabe? Talvez não quisesse acreditar
naquilo que meus sentidos intuitivamente procuravam me alertar. Um perfume
diferente no ar, vestígios aqui e ali, roupas desaparecidas – principalmente
cuecas...
Até que, exatos vinte anos depois – era
dia de São Jorge, o Santo Guerreiro, quando decidimos nos acertar e “juntar os
trapos”, e também agora, feriado, em que eu resolvera, em homenagem ao santo, preparar
um bacalhau ao forno. Agora, nesse mesmo instante em que o prato, entre folhas
de alface e taças de vinho, esfriava sobre a mesa, enquanto a verdade, que
sempre esteve ali, silenciosa, finalmente se impunha, nua e crua, aos meus
olhos. Eu não poderia mais deixar de vê-la. Ou mesma negar-me a enxergá-la. Em
poucos instantes, passamos da alegria, que agora se revelava o que sempre fora,
afinal de contas, pura ficção e falsidade, para o mais completo desespero. “A
casa caiu”, diriam depois.
O fato é que aquilo que já vinha
lentamente se corroendo e apodrecendo – uma palavra mal colocada, críticas
recíprocas, filhos de permeio, apartando o bate-boca –, rompeu-se de vez, com a
revelação (ou seria mera constatação?) da existência dela, “a amante”. Ou seria
“segunda esposa”? Afinal, desde o início, lá estava ela, participando e
partilhando de tudo, da mesa, dos bares, das músicas, das festas. E também da
cama. Da minha cama! Dentro do meu próprio quarto! Na minha casa! Só eu que não
via. Mas, naquele dia, a revelação crua, de chofre, soterrou para sempre
aqueles vinte anos, que subitamente se tornaram meros escombros um tanto
nebulosos.
Assim foi com a cama. Depois de passado
o estardalhaço, quando tudo se resolveu enfim, não sem traumas – a saída
definitiva do Rodrigo –, era preciso também dar uma destinação à cama. Contratei
um senhor para recolhê-la, e foi durante a desmontagem da cama que percebi toda
a ruína que ela representava. Não, não era mais a mesma cama, que com tanta
alegria a recebi em meu quarto, no mais íntimo do meu ser. A madeira, envelhecida,
estava muito ressecada, com uma aparência triste, de quem carrega todo o peso
do tempo. Um encaixe da lateral havia se soltado e nunca foi consertado. O
Rodrigo simplesmente amarrou um trapo para segurar o estrado do colchão e ficou
aquele improviso durante anos e anos. A cabeceira tinha pingos de tinta aqui e
ali, da última pintura das paredes do quarto. Há quantos anos mesmo? Só agora
eu via de fato todo o simbolismo que aquela cama, um dia tão bela e prazerosa,
e agora totalmente em ruínas, tinha na minha vida. Urgia livrar-me dela.
Eu olhava a cama, saindo aos pedaços, em
ruínas. Tal como eu saía daquele relacionamento com o Rodrigo. E constatava o
inevitável: que eu havia sido mais feliz, com o Rodrigo, sem aquela cama em
nossas vidas. Sim, quando o conheci, e perdi a cabeça, a compostura, e, de
certa forma, até mesmo a decência, tudo era cama para nós, de madrugada, na rua:
o banco no canto mais escuro da pracinha deserta, o lado não iluminado de um
poste, o cantinho de areia que formava uma pequena duna à beira da praia, o jardim
de uma casa abandonada, até mesmo a roda gigante do parquinho totalmente às
escuras àquela hora em que as crianças, inocentes, dormiam com os anjos. Ficávamos
em silêncio, um silêncio profundo, nos olhando, olho no olho, e de repente nos atracávamos,
onde quer que estivéssemos. Cobertos pelas estrelas e pelo manto da luz da lua,
amávamo-nos com furor, insaciavelmente. O Fábio, que acompanhou o início de
nossos encontros (aliás, foi o Fábio que nos apresentou), era testemunha daqueles
arroubos enlouquecidos, que sempre terminavam com o Rodrigo me levando nos
braços e me depositando com cuidado na porta de casa.
Eram tempos em que saíamos para ver a lua, beber vinho, tocar violão. Talvez, os únicos bons tempos que vivemos, antes daquelas longas duas décadas, que terminaram abruptamente, de forma tão bestial.
Eram tempos em que saíamos para ver a lua, beber vinho, tocar violão. Talvez, os únicos bons tempos que vivemos, antes daquelas longas duas décadas, que terminaram abruptamente, de forma tão bestial.
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